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13 de fevereiro de 2011

Sobre os trilhos


           Às vezes, Airton não queria sentir nada. Absolutamente nada. Apegando-se cegamente à idéia de poder viver completamente acima ou mesmo abaixo dos processos, trâmites e conflitos inerentes à existência humana, tal como ouvira dizer um personagem interpretado por Robert De Niro num filme que assistira recentemente.
           Nessas circunstâncias, perdia-se facilmente em meio aos seus devaneios e não conseguia decodificar uma alternativa sequer frente às múltiplas bifurcações sociais. Simplesmente fugia, temendo de antemão ou esquecendo-se por antecipação, as diversas vertentes que se abrem mediante nossas possibilidades de observação, comparação e busca de parâmetros junto aos grupos ou sociedades nos quais nos inserimos, pertencemos ou tivemos a oportunidade de nos aproximar, ainda que superficialmente.
Limitava-se a embaralhar cada vez mais o seu pensar, a agir como se não houvesse intencionalidade alguma associada às suas mínimas atitudes e a adotar o negativismo como sendo o único meio plausível para suportar todas as desavenças entre suas porções de eu.
Parecia irremediável, mas, principalmente durante suas aventuras noturnas, Airton sempre incorria no mesmo erro: não conseguia deixar de contrastar a sua dor com a felicidade que exalava de todas as pessoas enamoradas e ao mesmo tempo recompensadas com a ideologia que quer equiparar o consumo à principal forma de se transformar seres apáticos em verdadeiros cidadãos.
Em estado de profundo isolamento, sequer em condições de discernir entre suas escolhas ou de procurar algum amigo-confidente, nosso personagem passava noites inteiras a caminhar pelas ruas das cidades onde vivia ou mesmo pelas estradas de sua dividida mente, sem se importar com qualquer emboscada que estas poderiam lhe sugerir.
Passava de bar em bar, de dúvida em dúvida, de bebida em bebida, de solução descartada em solução descartada, sem ao menos notar o variar das horas, pois sabia, talvez mais do que ninguém, que a sua angústia só acirraria ainda mais a sua subserviência.
Certa vez, cansado de sua estafante rotina, juntou algumas economias e arriscou viajar. Precisava espairecer, visto que até a releitura de alguns exemplares de sua coleção de histórias em quadrinhos vinha lhe aborrecendo profundamente. Pegou um trem – meio de locomoção escolhido por influência que sofrera dos tempos em que seu pai era vivo – e foi logo tomando a direção do último vagão onde, e somente onde, segundo os seus julgamentos, conseguiria deixar de se lamentar na proporção em que alguns quilômetros fossem ficando para trás.
            As pessoas com as quais mantinha estreitos laços de amizade, de amor, enfim, relações que o asseguravam uma mínima e confusa convivência em sociedade, haviam ficado muito longe. No entanto, ao contrário do esperado, sustentavam-se em suas lembranças como protagonistas invariáveis das mais diversas histórias que ousou experimentar junto ao seu imaginar cênico.
Resignado, Airton voltou-se para a janela na tentativa de entreter-se com algumas paisagens. Precisava relaxar, mas acabou não tendo sucesso em seu intento. Percebendo que uma nova estação se aproximava, foi invadido por uma estranha sensação: entreabriu os lábios e sentiu um sorriso simplesmente escorrer de dentro, enquanto alguns passageiros desciam do trem e saiam correndo a fim de cumprimentar aqueles que os aguardavam.
Foi levado a refletir sobre vários, inúmeros assuntos distintos, sem um nexo sequer capaz de lhe permitir sair daquele estado de inércia quase total em que se encontrava. Nesse espaço de tempo, ocorreu-lhe algo decifrável e, mais do que depressa, retirou um velho caderno de anotações, assim como uma caneta de estimado valor sentimental de sua mochila e deixou seus pensamentos simplesmente deslizarem sobre o papel sem margens:

# Talvez esteja passando quando o meu pranto insistir em cair ou, porventura, já esteja enxugando o seu quando eu insistir em caminhar novamente #

Airton estava impaciente, confuso e cansado demais para qualquer tipo de edificação. Além de não sentir, também não queria pensar em mais nada e, mesmo que algumas idéias viessem à tona, nada faria a não ser desprezá-las. Não que sabia de onde provinham, mas o fato é que só tinha forças para contemplar a paisagem e aguardar a chegada daquele trem que o conduzia para algum lugar que ainda não tivera coragem de descobrir, visto que comprou a sua passagem às pressas, sem se importar ou atribuir algum significado ao seu destino.
– Meros detalhes, simples formalidades. – sentenciara Airton ao bilheteiro da estação à medida que ia abrindo sua carteira e lhe estendendo uma quantia em dinheiro.
O céu manteve-se claro desde o momento de seu embarque. Algumas nuvens pareciam querer lhe comunicar algo diferente todo o tempo. Os pássaros que conseguira avistar não pareciam nem um pouco cansados de lhe inspirar uma aguçada argumentação frente à sua atual situação de desconforto.
Sem se dar conta, adormeceu... Sonhara com a vida levada por homens, mulheres e crianças do sul dos Estados Unidos da América – peças fundamentais e, ao mesmo tempo, substituíveis da rentável engrenagem do algodão – os quais, dentro de suas possibilidades, acabaram criando muito mais do que um simples ritmo musical, mas uma acalorada forma de expressão quanto à sorte que imprimiram sobre suas vidas.
Acabou acordando com o chamado de uma simpática senhora, anunciando-lhe a chegada da última estação. Ainda conseguia ouvir os últimos acordes de um violão e de uma gaita, bem como a voz rouca de uma mulher soando ao fundo...
Apertou os dedos sobre os olhos – num gesto que quase sempre nos remete à vontade de acreditar em algo – e, só então conferiu o seu bilhete. Esperou a máquina cessar, pegou a sua mochila e desceu pelas escadarias da estação ferroviária com o humor completamente renovado.


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