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30 de outubro de 2014

Os sistemas

     Toda vez que algo fugia à previsibilidade – e esta era a regra, não a exceção, como muitos acreditavam – instalava-se dentro daquela sociedade um clima de idolatria e pouquíssima solidariedade. As ideias, desacostumadas àquelas reflexões que pedem um pouco mais de profundidade, tinham, assim, de se virarem para locais, pessoas e situações até então ignoradas. Inseguras, confusas, sem nada daquilo que poderia torná-las ao menos um pouco confiantes para tentar uma sugestão que parecesse razoável, apressavam-se em associar quaisquer causas a quaisquer efeitos, sem, no entanto, considerarem as peças de suas próprias engrenagens.
     – Achamos os culpados – era o que se comentava nos poucos momentos em que as pessoas realmente se juntavam para ouvirem e escrutinarem outras possibilidades. – Agora, só precisamos achar um meio de reformar nosso sistema para logo retornarmos à nossa mais que merecida normalidade. Em rede nacional, aqueles que eram vistos como os únicos capazes de debaterem e indicarem as saídas para aquela calamidade, batiam com as mãos sobre o aço como meio de se livrarem dos maus presságios.
     – Por pouco estes imprestáveis não nos levaram à ruína! Imaginem uma economia que não esteja acima dos que por ela trabalham!!! Seria um sistema que não demonstraria a menor finalidade! Que os novos técnicos encontrem logo este defeito, pois alguns lunáticos já começaram a apontar novos responsáveis por toda esta algazarra. Referem-se a si mesmos como parte do problema, pois – segundo eles – somos nós mesmos, os aqui vivem ou viveram, que escolheram, escolhem, fizeram e ainda fazem este sistema deixar de ser prático.
     – Ora, o que é que eles sabem? Na justa divisão das tarefas, não elegemos estes técnicos para fazerem os ajustes, mantendo nosso sistema em seu mais perfeito estado?! Que eles façam, então, a sua parte e nos deixem em paz com as nossas vidas diárias! Afinal, já temos nossas preocupações e, se os escolhemos dentre as filas imensas de candidatos para estes cargos, porque não cumprem com o combinado?! Não demora, vamos ver manifestações e greves por todos os lados. E, desse jeito, todos teremos de nos ocupar da política (vejam só que catástrofe!) como meio de melhor nos organizarmos...
    – Às urnas, meu amigo, minha amiga, lutemos para que ele não acabe por conta destes técnicos irresponsáveis! Escolhamos outros mais bem preparados para fazerem desta comunidade o que ela sempre foi: uma comunidade sem conflitos, onde cada um ocupa a posição que merece e desfruta das riquezas de acordo com suas qualidades naturais!!!
     E era assim que se desenrolavam os preparativos para o que batizaram de “a festa da democracia popular”, festa esta que chegava ao seu ápice quando os dois mais celebrados ora acusavam-se pela usurpação dos recursos públicos em suas gestões, ora se vangloriavam por terem feito de tudo em “seus governos”, conseguindo isto, batalhando por aquilo, ampliando o que se convencionou chamar de benefícios para a massa esmagada, comovendo os cidadãos e cidadãs com sua retórica que versava sobre quase tudo, menos sobre propostas e metas, compromissos, afinal, que deveriam ser não só expostos, mas debatidos constantemente, em plebiscitos, inclusive com aqueles que, habituados à condição de mantenedores deste sistema em que poucos mandavam, muitos obedeciam, repleto das mais descabidas desigualdades, ainda assim o aceitavam como justo, pois a maioria, de tempos em tempos, assim o legitimava. Esperando que os novos carrascos fossem ao menos piedosos quando tiverem de bater ou matar para que a ordem e o progresso continuem sendo as velhas metas que todas as nações ainda hão de alcançar. Independente do suor, das lágrimas, das guerras, das sanidades ou dos planetas que estas ditaduras comandadas por estes discípulos de Narciso ainda possam vir a precisar.

14 de outubro de 2014

Estabilidade do estabelecido

Se retiraram mais um de seus direitos
E no lugar dele um conjunto de deveres usaram para substituí-lo
Não hesite!
Chame a polícia
Ofereça-se como parte do pagamento para assegurar a mercadoria
Recorra ao exército ou ao crime que só se organiza
Ligue para a vizinha, jamais aceite um favor se não puder retribuí-lo
Reclame desta mania que acabou se tornando coletiva
Proteste, expresse este vazio que tem sempre de ser preenchido
Cobre dos candidatos
Mesmo que só eles saibam do que o povo mais precisa
Demonstre o quanto lhe valeram os anos de escola, cantando todos os hinos
Cumpra com as suas obrigações para a continuidade desta quase democracia
Não deixe de tomar os seus remédios
Mantenha-se atento quando se formar a próxima fila
Não se esqueça de recolher todos impostos
Faça a sua parte
Demonstre piedade aos desassistidos
Comporte-se direitinho!
Coloque suas intenções na lista de orações que logo elas serão atendidas
Prove que você suporta chegar ao seu limite
E que pode prorrogar a sua realização até uma outra vida
Onde tudo é perfeito e a dignidade e a autonomia não são esquecidas
Vamos lá, continue sorrindo, aumente a sua oferta nos leilões dos delírios
Repita, quantas vezes for necessário, que as leis também são infalíveis
Que as propriedades não foram em algum momento instituídas
Que não há nada irrevogável além da morte que se anuncia
Pague a pensão, case-se com um bom partido
Planeje, parcele, invista pesado no seu tempo livre
Participe das estatísticas
Contribua com a inadimplência
Sinta-se feliz por não perceber esta tirania sobre a existência
Que te motiva a lutar por poderes ainda mais paternalistas.

13 de outubro de 2014

Amores

      Humberto gostava da Sofia, que estava com o Gustavo, que gostava da Quitéria, que ficava com o Salvador, que gostava da Adriana, que namorava o Wellington, que queria mesmo era estar com a Mariana, que gostava da Catarina, que saía com o Rafael e com a Tatiane, que estavam loucos para conquistar o Henrique, que não estava nem aí para ninguém. Divertia-se com quem aparecesse, pois sentia que assim teria alguma aventura para distraí-lo e livrá-lo da angústia que o fazia enlouquecer. Letícia gostava do Ramon, que não estava satisfeito com o seu casamento com a Júlia, mas que não tinha coragem de terminar. Talvez pelo medo de magoar ou por não desejar ver seu nome associado a tudo que ele mesmo, quantas vezes condenou, quando via acontecer. Por isso, ficava com as duas por querer manter uma aparência que nem a ele parecia convencer. Yves tentava encontrar alguém que o compreendesse. Alguém com afinidades capazes de fazerem de cada detalhe um sempre novo amor aparecer. Conheceu Luciana que queria se casar e viver feliz para sempre, mesmo que este para sempre durasse só até ela morrer. Casaram-se, tiveram 2 filhos, mas logo se separam, pois ambos não suportaram a rotina e novas experiências, com novos amantes, começaram a fazer. A monogamia, que antes era o ideal, deixou de os entreter. No entanto, as novas descobertas, tão logo se realizavam, levaram-nos a se sentirem tão vazios que acabaram retornando ao relacionamento que juravam nunca mais querer, talvez pela segurança que imaginavam os proteger sobretudo de si mesmos, mas o desgaste era tão explícito que não foram poucos os que podiam perceber. Todos continuam por aí, com ou sem parceiros, querendo companhia para na solidão e na loucura não se desfazer. Afinal, não procuramos nos outros aquilo que nos falta, também?! Não são nossos amores alguns dos sentimentos que mais nos mantém vivos, pois nos afirmam e reafirmam, conduzindo-nos à construção dos sentidos para continuarmos aprendendo a conviver, a ponto de, quando eles acabam, desejarmos simplesmente desaparecer?! Perguntando-nos, talvez, sobre como estas estranhas forças acabam colidindo de modo que a gente sinta todas as suas explosões e implosões interferindo no nosso jeito de continuar a responder?