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24 de novembro de 2014

Criar

Cavar, plantar, regar
Adubar, esperar brotar e, se precisar, podar
Até que as raízes estejam fortes
E o restante da estrutura comece a desapontar

Crescendo como uma vida
Que para tanto há de se transformar
Adaptando-se e diferindo
Participando para poder se integrar

Então, arrancar e transportar
Deixar descansar para novamente tratar
Desempenar, serrar
Martelar, parafusar e lixar

Entalhar, envernizar ou pintar
Imaginar formas que talvez consigam lhe agradar
Fazendo da matéria recolhida
Um objeto que possamos usar

E que um simples olhar seja capaz de,
Em qualquer tempo, nos identificar
Escolher, enfim, um lugar
Para o dispor a fim de nos ajudar

Desenvolvendo os sentidos
Que façam da arte um meio
Que o homem mantém
Para com a natureza não se afastar.

16 de novembro de 2014

Cada um na sua

Cigarra cantando no quarto
Enquanto ainda havia sono
E o alarme insistia que já deveria estar pronto
Para trabalho
Cigarra e humano se debatendo
Buscando vida ao invés de emitir só um canto morto
Uma sacudida na cortina e eis que se dá o encontro
Com espanto mútuo a cigarra é conduzida à janela
Voando rápido
Visando uma árvore
Além do muro.

10 de novembro de 2014

Bagagem

Preciso repensar minha forma de pensar
Rever o que insiste em habitar
Reconhecer o que se escondeu
Por não haver uma estrutura
Mas estruturas que não foram capazes de o suportar
Preciso encontrar o que ainda não expressei
Por medo ou culpa de não agradar
Entender que autonomia e liberdade
Se constroem através do que a gente faz
Junto a um meio em que alguns com isso sequer vão se importar
Lembrar que construímos ideias, imagens e ideais
E que podemos muito bem nos enganar
Sobre os objetos, fatos ou as pessoas que queremos explicar
Mas que, ainda assim, não há motivos para abdicar
De tentarmos nos aproximar
Comunicando o que carregamos dentro
Como uma bagagem que nos acompanha
Para onde quer que a gente vá.

7 de novembro de 2014

Elementar

Lembrar de rimar
Separar para juntar
Cada palavra em uma frase
Para continuar a transformar
O conjunto em texto com o que mais lhe inspirar

Despertar a memória
Colocando-a a par
Dos sentimentos que mantém o corpo em contato com o ar
Atravessar os limites do seu tempo e lugar
Por meio das tramas que conseguir inventar

Apontar
Tentar descrever
Conjecturar
Querer e se dispor a captar
Diferentes perspectivas para não deixar a chama apagar

Mergulhar
Abandonar a embarcação para aprender a nadar
Percebendo o que o liga à terra
Para fazer-se capaz de viver e conviver
Sem se desmanchar.

2 de novembro de 2014

Pedalada

         Ainda no asfalto viu uma carta de baralho jogada na sarjeta, bem em frente ao bar que ficava próximo de sua casa. Uma dama de ouro pela metade, com a inconfundível coroa, símbolo da nobreza que somente a poucos abençoava... O que estaria fazendo uma dama como aquela em frente a um bar? – ironizou, pensando em como os pensamentos podem se ramificar diante das mais simples casualidades. Pelas estradas de areia, encontrou velhos sapatos, de mulheres, homens e crianças, lembranças que uma família inteira já não precisava, uma cadela que se escondia no meio do mato para proteger os seus dois filhotes que, assim como ela, também correram assustados quando ele os encontrou igualmente por acaso. Coincidências que acarretavam as mais diversas reações. Voluntárias e involuntárias. Quais motivos a levaram a ficar por ali (era a segunda vez que os via, assim como suas pegadas), se, pela aparência, não lembravam em nada uma raça de cachorros do mato, mas antes a que conhecia como vira-lata? Será que sofrera tantos maus tratos a ponto de preferir fugir da domesticidade, cuidando dos seus em um ambiente mais selvagem? Ouvindo NOFX no walkman que um velho grande amigo lhe dera, quando era o que mais precisava, seguia tranquilo em sua jornada. Mesmo que se perdesse algumas vezes em meio aos canaviais, encontraria aquele lugar que há um tempo vira, mas não pode apreciar, pois ali um casal supostamente pescava. Apesar de lhe parecer estranho o fato do homem esconder a mulher atrás de seu corpo quando ele passara. Uma represa, rodeada por uma mata, onde o frescor era tão intenso que o fazia sentir, compreender o que motivara muitos a largarem a vida nas cidades mais abastadas para com a natureza um maior contato celebrarem. Após alguns minutos, intuiu que estava perto, pois já se beneficiava do oxigênio renovado que as plantas, nestes lugares, costumam produzir sem o menor interesse sobre o bem o ou mal que de suas ações podem resultar. Pedalou mais um pouco e eis que viu o que tanto procurava. Lá estava a água, as margens e as árvores que a circundava. Um bela represa, na verdade, mais uma propriedade particular com uma placa que alertava sobre a proibição da caça e da pesca como intuitivamente esperava se tratar. Não que quisesse praticar alguma destas atividades. Tudo o que queria era contemplar, sentindo, associando o que lhe chegava com as lembranças que guardava. Após o que chamaria êxtase, voltou à estrada e continuou seguindo, sempre beirando a mata, até ser retirado de seu estado de entorpecimento quando uma lebre cruzou o seu caminho a toda, espantada pela sua presença naquele espaço onde, naquela época, provavelmente poucos homens por ali passavam. Corria como uma desesperada, e ele não pode deixar de pensar sobre o instinto de sobrevivência que age sobre todos os animais. Como a areia havia se acumulado naquele trecho, visto que a água das chuvas por ali escoava, quase perdera a direção, tamanho o susto que a lebre provocara. Também ele reagiu como se estivesse ameaçado. Recuperado, dava boas pedaladas, pois como ainda era cedo, queria ver até onde poderia chegar. Não tardou e viu um filhote de tamanduá passar correndo, talvez estranhando a presença daquele humano por aquelas paragens. Notara que só havia as marcas de pneus de uma moto, já quase apagadas. Retirou os fones dos ouvidos, pois imaginou a quantidade de pássaros e outros animais que deveria haver no interior daquela mata, visto que de tempos em tempos, a indústria que arrendava toda aquela terra para transformá-la em extensos canaviais, ateava fogo antes de colher a cana para ser, em sua própria usina, processada. Quantos não seriam mortos a cada período de safra graças a estas práticas tão civilizadas? Será que aquelas espécies julgavam as leis humanas como contrárias às leis naturais, como ele as julgava? Teriam tempo de se reproduzirem? Às aves ainda restava o recurso de migrarem, mas e os animais terrestres, quais seriam as suas táticas? Não tardou a encontrar uma fazenda com algumas casas, ouvir vozes humanas, o latido dos cachorros, o que lhe bastou para lembrar-se que sequer sabia aonde estava, que usara muitos atalhos e que muito provavelmente se perderia até encontrar o caminho de volta. Escurecia e o nosso personagem pedalava, entre a cana, chegando às cercas que demarcavam as extensões imensas daquelas propriedades. Pensava que dispunha da lanterna de seu celular, caso demorasse tanto para reconhecer uma coordenada que o ajudasse a se localizar. Isso o tranquilizou, tomando um bom gole de água... Ligou o walkman, Fat Mike gritava por mudança, ironizava a tacanha moralidade humana, reivindicava através da música uma liberdade que apenas figurava nas constituições, mas que na prática acabava desprezada... Para não me estender em suas idas e voltas por entre os carreadores dos canaviais, vamos alçá-lo aos caminhos que gravara e que, com a ajuda da lua que poupou o uso da luz artificial, o levaram a enxergar as luzes da cidade, e assim, após algumas músicas de um novo disco que já se iniciara, chegou à sua casa. Pronto para preparar uma janta que, após o banho que foi tão refrescante, devorou como se estivesse há anos sem sentir o seu próprio paladar.