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27 de dezembro de 2020

abra sua janela gradeada

talvez

a insensatez seja a marca

dessa raça tão prosaica

o delírio seja a cepa

a farpa que se enterra

e sobrevive

na lasca da saudade


pode ser

que haja até sinceridade

na forma como a âncora foi lançada

mas isso não me convence

preferia que houvesse mais

algumas pitadas desse tempero estranho

em minha comida envenenada


quem sabe o que faríamos

se estivéssemos mais próximos

menos receosos

e mais soltos em nossos passos?


quem arriscaria contar essa piada

quando quebrássemos seus argumentos

com fatos e não

com a violência dessas crendices infundadas?


operadores

que não se diferenciam de suas máquinas

olhares que não vislumbram a vida na sacada

marretas e desempenadeiras

chefes e governos

capazes de fazerem tudo

menos algo que valha algo


para a sua

a nossa

própria humanidade.

4 de dezembro de 2020

Mika

Jamais esteve a salvo. Quase sempre tão calma. Até que aquele furacão lhe colhera. Deixando-a incrustada. Em seu novo precipício. Intrigada. Pensava em como fazer mais uma vez a escalada. Enquanto via seu corpo arrebentar-se contra os rochedos infinitos. No hospício. Vira o desperdício. De pessoas, drogas e verbas. Gastas sem o menor compromisso. Com a vida. Ela se debatia. Lutava. Com os seus próprios meios. Para escapar. Mudar o foco. Recobrar as perspectivas. Como num filme. Onde os cortes ocorrem. Para que o efeito cumpra o seu papel. Acionando o metabolismo. Realçando aquele trecho. Fragmento específico. Como a sensação que a percorria. Naquele momento crítico. Em que viu a fagulha. Acendendo-a. Indicando-lhe uma saída.

27 de novembro de 2020

Epifania

Ela corria. Por ruas doentias. Adentrando as vielas mais sombrias. Sem qualquer hesitação. Sobre aquilo que há muito decidira.


Ela saltava. Como num sonho. Que começa ao meio dia. Enlouquecida pela brisa. Recobrava as partes de si mesma que há muito já não via.


Ela voava. Como meio de externar sua rebeldia. Planava sobre os postes. Pousava nas copas de algumas árvores. Carregadas dos frutos de sua mania criativa.


Ela corria. Saltava. Flanava. Se entendia. Naqueles dias em que não havia nenhum tipo de calmaria.

25 de novembro de 2020

Lamparina

Corpo que se inspira

Imagina

Testa


Através da palavra

Dedica-se

À expressão daquilo que o instiga


Abrindo-lhe perspectivas

Vieses para atravessar

A lama, A lava


O crime que é só nosso

O sangue que escorre

E as lágrimas que esgotam o riso da histeria.

22 de outubro de 2020

Alan Moore

(…) Talvez a maior da minhas vaidades seja a tentativa de esconder minha imensa vaidade, mas, por favor, não perca o seu tempo com isso.”


O que eu faço é ficar sentado numa sala escrevendo – deve ser uma das existências mais sem graça do mundo.”


(…) Quanto mais envelheço, menos fico preocupado em me revelar e ficar com cara de bunda.”


Se amanhã fôssemos juntar todos os líderes, colocar no paredão e fuzilar – e permita-me curtir essa ideia tão doce mais um pouquinho antes de jogar fora –, se fizéssemos uma coisa dessas, a sociedade provavelmente entraria em colapso, pois a grande maioria da população passou milhares de anos condicionada a depender de líderes que venham de uma fonte externa. Virou muleta de muitos. Caso você chute a muleta, essa gente vai despencar e levar a sociedade junto. Para se atingir um estado funcional e real de anarquia, é óbvio que você tem que instruir esse povo – e tem que ser instrução massiva – pensando num estado no qual elas pudessem assumir responsabilidade pelo que fazem.”


O que tento é pegar crenças políticas com grande potencial de impopularidade e deixo-as mais acessíveis, tento levar ideias bem amplas e bem complexas às crianças, num formato que elas entendam.”


Sempre existe a possibilidade de que parte da sua mensagem vai se perder, que parte dela vai ser embotada. Mas existem estratégias, existem maneiras de dar a volta nessas coisas. Se você for esperto, você encontra um jeito de passar a perna em quem te contrata e imprimir o que há de mais sórdido, de mais incendiário.”


Eu e outros garotos e garotas da minha idade, alguns da escola de ensino médio que eu frequentava, outras da escola para moças, decidimos espontaneamente montar uma revista. Basicamente para veicular poesia ruim. Chamava-se Embryo; de início ia se chamar Androgyne, mas eu descobri que as letras não cabiam na capa e aí encurtei. Era uma bagunça.


Eu escrevia o que achava ser poesia. Eram geralmente umas coisas angustiadas, arrependidas, sobre a tragédia da guerra nuclear, que na verdade tratavam da tragédia que era eu não ter namorada.”


Não creio que eu seja um desses palhaços que chora por dentro, e sim um trágico que ri por dentro. Minhas comédias preferidas são as que têm um toque de tragédia. Minhas tragédias favoritas são aquelas em que você quase se pega rindo.”


Entenda, por favor, que ainda não estou totalmente lesado pelas drogas nem tão confiante no meu próprio intelecto a ponto de sugerir que chegaremos a uma solução, ou algo que lembre uma solução. Só quero apresentar as questões da forma que as vejo, à luz mais interessante possível.”


Eram os anos 1980, tínhamos uma Boadiceia insana da direita governando o país e eu estava muito pessimista, em termos políticos, sociais e vários outros. Então era comum isso se refletir no meu trabalho… eu não diria que o que faço agora tem só coelhinhos fofos e céu azul, mas acho que tem um lado mais otimista do que o que eu fazia nos anos oitenta. O século mudou.”


Somos um bando de gente bem criativa e quando a coisa fica medonha, como anda ficando, no fim das contas o que interessa é se vamos contornar o problema ou não… a morte pendendo sobre a cabeça tende a dar um foco maravilhoso à mente. Pode ser que alguns problemas incitem suas próprias soluções, portanto. Assim espero.”


Não tenho desejo algum de ser moderninho. Não tenho vontade alguma de fazer parte da indústria de quadrinhos. Tenho grande interesse pela mídia… estou tentando criar um universo interessante que renda imaginação para garotos, para adolescentes ou crianças ainda mais novas. E isso me parece válido.”


Ser artista e ser mecânico é a mesma coisa. É pura questão de aplicação. Não tem nada de místico.”


"A ideia de que existe algum prestígio em ver seu trabalho virar filme, isso é uma coisa que me deixa indignado porque parece que todo mundo na indústria acredita na piada. Pra mim isso quebra a única motivação que eu tenho para trabalhar todos esses anos nos quadrinhos, que é fazer a mídia evoluir. Todo mundo com quem eu falei nesses anos, eles também me diziam que era isso que queriam. Acabou, contudo, que ao primeiro sinal de que o trabalho deles poderia virar filme, a atitude mudou. Parece que sua HQ virar filme é o que valida a HQ, que antes era só um gibi e agora é cinema.”


(…) É assim que eu posso ter utilidade. Me deram essa influência que eu não pedi para ter, que consiste em muita gente conhecer meu trabalho. Não é uma coisa que eu busquei, mas existe, e se de alguma forma for necessária para ajudar a deter a maré da idiotia, então que eu sirva para isso.”


Quando eu era garoto, inventei uma Fantasia ridícula, muito mal pensada, do tipo de Figura que eu poderia ser quando crescesse. E o mais horripilante é que ela se concretizou nos mínimos detalhes.”


Se se pode preencher gibi atrás de gibi, mês sim, mês também, com porrada, então, pode-se preencher pelo menos um gibi com um ato sexual. Claro que vai ser tão interessante quanto porrada.”


O grande chamariz em mostrar figuras totalmente dessexualizadas, como Belinda, Pafúncio ou Popeye, participando em esquetes pornográficos está no contraste mais amplo que se cria, dado que o conteúdo sexual parece mais sujo quando no contexto de um ícone cultural até então imaculado. Existe também o prazer subversivo em alfinetar a visão anódina e assexuada da sociedade representada pelas tirinhas de jornal.”


Claro que tanto o sexo quanto a expressão sexual são políticos e sempre foram, mas foi só no final dos anos sessenta e nos setenta que passaram a ser vistos como tais de maneira ampla. Da mesma contracultura sessentista que deu ascensão a Robert Crumb, catapultou-se o feminismo que gerou as críticas mais ferozes ao quadrinista.”


(…) Se você vive numa época de repressão política em que tem uma pauta aparentemente ditada pelos fundamentalistas que se infiltram não só nos Estados Unidos, mas em todos os países contentes em ficar à sombra dos EUA, não há outra opção que não declarar o que se pensa, da forma que for possível, ou calar-se.”


Ao invés de nos abrirmos a uma relação saudável com nossa própria imaginação sexual, somos conduzidos à recônditos sombrios pela vergonha, pelo constrangimento e pelas culpas, e estes recônditos sombrios geram monstros de toda natureza.”


As culturas de sexualidade aberta e progressista, como a da Grécia antiga, deram ao Ocidente quase todos os seus aspectos civilizatórios, enquanto as culturas de repressão sexual, como a da Roma tardia, nos deram a Idade Média.”


Ilumine seu pedacinho de terra, as pessoas que você conhece, as coisas que você quer celebrar. Ilumine com sua arte, com sua música, com seus escritos, com seja lá o que você faz. Faça isso que pouco a pouco ele pode virar, se não um mundo melhor, pelo menos um mundo mais esclarecido.”


Sou bem mais estranho do que o que eu disse. Só estou lhe passando o resumo rápido, comercial, aceitável. Ainda tenho meus segredos.”

8 de outubro de 2020

sem comparação

deuses carentes

criados

para cobrar adoração

amaciando a carne

para instaurar

a santidade da abnegação

alardeando

a existência de um espírito

capaz de aguentar

uma vida de sacrifícios

acalentando expectativas

para os que acreditam

que precisam de perdão

por existir

para sorrir

e viver

exigindo

que o universo

funcione tão somente

para lhe gerar gratificação.

15 de setembro de 2020

Fernando Gonsales

(...)Os demônios habitam a alma dos cidadãos. É nesse ambiente aconchegante que eles se sentem à vontade e procriam”.


É interessante notar que, por algum efeito de ilusão de ótica misterioso, é sempre mais fácil enxergar os demônios na alma do outro do que na própria. Os demônios no outro são mais explícitos e toscos, enquanto que os demônios internos são mais discretos e ardilosos”.


Os demônios externos podem ser tratados com exorcismo, pauladas ou duchas de água benta. Mas os demônios internos exigem sutileza. Talvez um convite para tomar um chá e uma boa conversa convença os demônios a darem uma volta por aí. Talvez. Mas o diabo é que eles sempre voltam. Porque a natureza da luz é formar sombra”.


(Vostradeis – O mago, o mito, o picareta)

30 de agosto de 2020

Mark Sandman


Encarando uma tempestade de fogo

Sacolejando os ossos

Caminhando na neve congelante


Pescando, colhendo, ralando

Para que as vivências

Fossem projetadas além do horizonte


Procurando, desafiando-se

Querendo experimentar os minutos

Os dias e as semanas


Adoecendo no Brasil

Repousando, forçando a criatividade

Buscou a fagulha que o tornava flamejante


Combinando o vital

Com a alternativa hesitante

Insubstituível Mark Sandman


Garimpando o sentimento vacilante

Buscando cura

Expressão que o mantivesse sobre o palco


Irradiando.

9 de agosto de 2020

falsa modéstia


entrevistada

atribuía aos deuses

o que fazemos no mundo natural


contando o tempo

rolando os dados

traficando animais


queimando florestas

por desgosto

por gosto


imoderado senso do pessoal.

4 de agosto de 2020

Roque Esculacho

Esse cara é uma piada.

Nasceu num dia estranho: 29 de fevereiro, e até hoje acha que tem 17 anos.

Pouco se sabe de seus familiares. O que ficou foi somente um nome e um sobrenome que ninguém consegue dizer se foram obra da mãe ou do pai.

O fato é que com o tempo ele acabou se transformando em uma caricatura em todos os cantos da cidade.

Serzinho manjado.

Difícil é encontrar alguém que consiga permanecer ao seu lado.


Sex appeal

Ora, ora… se não é a Madame Indigesta com suas lindas filhinhas fazendo caminhada! - pensou nosso personagem, caminhando ao encontro das 3.

- Tudo tranquilo, Madame Indigesta?

- Tranquilo uma ova! Vá procurar o que fazer, seu imprestável! Pensa que não sei que você está de olho nas minhas filhas…

- Mas Madame, o que seria da vida sem essas belezas. O que seria da humanidade se a gente não tivesse esse instinto, essa gana pela continuidade da espécie!

- Vá para o inferno, seu merda! Tá achando que eu vou permitir que alguma delas se engrace por você?!

- O que é isso, Indigesta! Deixa de ser tão superprotetora. Tá parecendo uma galinha choca! Elas estão na flor da idade. Loucas para conhecer outros mundos, vivenciarem os prazeres da vida.

- Você tá de brincadeira, não é, Roque Esculacho? Com você?!

- Mas é claro! Com quem mais poderia ser?! Um dia a senhora ainda vai ter a honra de me chamar de genro, você vai ver!


Músicas de lunáticos

Curtindo seus discos num volume infernal, Roque Esculacho só quer saber de uma coisa: diversão. Doa a quem doer.

Mas eis que seu vizinho, o Senhor Topetudo, aparece por cima do muro e grita com todas as forças:

- Roque Esculacho, de novo! Você não se cansa de ouvir essas merdas, não? Isso é música de lunático! Puta gritaria do caralho!

- Merdas, Senhor Topetudo?! Não tenho culpa se você não sabe o que é música boa. Quer que eu te empreste alguns discos?

- Não quero discos, porra nenhuma! Quero que você abaixe esse volume. Não tô conseguindo assistir minha novela.

- Novela?! Que porra de novela, Topetudo! Curte o som, pô! Deixa de ser cuzão. Não vou baixar volume nenhum!

- Vai baixar, sim; ou vou até aí e quebro todos esses discos!

- Quebrar meus discos! Nem fudendo! Se pular aqui como ontem, solto o cachorro de novo!

- Então, é assim, Roque Esculacho? Continue ouvindo suas músicas que vou ligar para a polícia e aí a gente vê quem canta mais alto!

- Não tô nem aí pra polícia. Eles já nem perdem seu tempo comigo ou com você. Você não tem moral nenhuma com eles.

- Merda! Isso não vai ficar assim, Roque Esculacho! Você não sabe com quem tá mexendo. Eu tenho poder. Você é um zé ninguém. Um zé ninguém!

- Poder?! Sente o poder desse som, então, seu machão imprestável!


Exploração do trabalho

Junkão é simplesmente Junkão. Um cara que já nem usa mais dorogas, mas que continua carregando a fama de todos os consumidores dessas substâncias no mundo todo.

Amigos de longa data, ele e Roque Esculacho já aprontaram muito pela cidade e seus arredores.

Há um bom tempo sem se trombarem, eis que se encontram na esquina do bar do Seu Tanaka.

- E aí Junkão, tudo certo?

- Fala aí, Roque Esculacho! Tudo tranquilo. E você, como é que tá?

- Beleza. Faz tempo, hein?

- Verdade, cara. Faz mó cara que a gente não se encontrava…

- E daí, vamos tomar uma no bar do Seu Tanaka?

- Certeza!

- He, he, he...


- Então, como é que anda a vida, Junkão?

- Pô véio, tá foda! Tô sem emprego de novo. Me mandaram embora só porque eu tava dormindo no trampo, cê acha?!

- Puta sacanagem! Esses caras são uns otários. Não percebem que um funcionário descansado produz muito mais!

- Então… Cambada de lixo esse povo, viu! Tô na caça de outro trampo, mas tô meio queimado, tá ligado?

- É, eu sei bem o que cê tá passando. Nunca tive um trampo com carteira assinada. Só bico e, mesmo assim, tá ficando difícil.

- Por que, Roque Esculacho?

- Ninguém valoriza a gente, cara! Semana passada tava servindo uma mesa na lanchonete do Tião Casacadura e ele ficou puto porque eu provei uma coxinha de frango bem na frente dos freguês, cê acha?! Me mandou embora e nem me pagou a noite de trabalho. Pô, só tava vendo se o rango tava bem temperado!

- É, Roque Esculacho. A coisa tá feia mesmo pro nosso lado.

- Nem me fala! Logo, logo vamo ter que começar a comprar fiado aqui no bar do Seu Tanaka.

- Fiado! Pra vocês, nem uma bala eu vendo fiado! Seus vagabundos. Por que não trabalham?

- A culpa não é nossa, Seu Tanaka. Eles é que não deixam a gente trabalhar, porra!


Rango diversificado

Surpreso, Roque Esculacho acabou sendo amordaçado, encapuzado e carregado para uma Kombi que aguardava ligada bem em frente de sua casa.

- Pegamos o magnata! Agora, é só levá pro cativeiro, fazer o contato, pegar a grana e viver sossegado até o fim da vida, não é, Marcão?

- Certeza, Bronca! É nóis! Duvido que não paguem! Enquanto isso, a gente vai apavorar esse otário. Pesar na cabeça dele até ele se borrar de medo.

- Essa é a parte mais fácil, Marcão! Deixa esse comigo que eu vô barbarizar com o tiozão preibói!

- Rá-rá-rá! Você é maluco, cara! Mas vai com calma, hein! Não podemos botar tudo a perder.

- Pensei numas brincadeirinhas novas, cê vai ver…

- Bom, chegamos. Leva esse mané lá pro quarto que eu vou buscar umas pizza pra nóis comê.

- Opa, pizza! Traz uma doce, Marcão. Sabe como é, pra sobremesa. He...he...he…


- Pronto, malucão! Deita aí. É aqui que cê vai ficar até a gente pedir o seu resgate. Fica frio, não tente nada, que logo, logo cê vai estar na sua casa com a patroa. Só que sem grana!

- Patroa?! Grana?! Cê tá de brincadeira! Cara, eu não tenho nem onde cair morto.

- Vai querer dar uma de coitadinho, vai?

- É sério! Tô na maior pindaíba, véio. Tinha saído pra descolar uma grana emprestada, mas não achei o Fabião Mulambão em casa…

- Ó, meu nome é Bronca. Se precisar de alguma coisa é só chamar. Agora, fecha o bico e me deixa jogar minha paciência em paz!

- Tô te falando, cêis tão enganados. Pergunta pra qualquer um da cidade sobre o Roque Esculacho que cê vai ver.

- Roque Esculacho é um fudido! Cê tá querendo me fazer de otário, mano? Você é o dono da concessionária. Tá montado na grana, que eu sei.

- Véio, cês tão viajando... Meu nome é Roque Esculacho. Eu não tenho grana, se tivesse tava morando em outro lugar, não naquela casa caindo os pedaços.

- Tiozão, cê tá me torrando a paciência, fica quieto ou vou te encher de porrada! Já, já o Marcão volta com as pizza e a gente já faz o primeiro contato com a sua família…

- Família?! Cês tão de zueira. Não tenho telefone fixo, só essa merda de celular que tá no meu bolso.

- Passa pra cá! Deixa eu conferir esse número.

- Puta que pariu, pegamo o cara errado! Que cê tava fazendo naquela rua, em frente aquela casa, pô?!

- Ué, eu moro lá perto, cara! Já falei que tinha saído para descolar uma grana emprestada, porra!

- Véio, vou te soltar, mas se você der com a língua nos dentes, a gente te mata, tá ligado?

- Fica tranquilo!

- Então, tá. Vaza e nem olha pra trás, falou?

- Ah, não! Só vou depois de comer, né cara. Faz mó cara que não como pizza doce… Eu curto pra caralho!


O Diabo é o pai do Roque

I aí, Roque Esculacho, tá de bobeira di novo?

De bobeira tá você, Muleque Remelento! Eu tô dando um trampo pro Seu Jão Tiragosto. Cê não tá vendo que eu tô fazendo as conserva pro cara, não?

Foi mal aí, Roque Esculacho. É que cê tá sempre de bobeira, então pensei que cê só tava continuando sua obra…

Ei, espera aí… Que obra cê tá falando, Muleque?!

Ora, a obra do seu pai.

O que cê sabe sobre o meu pai, hein???

Ué, o que todo mundo sabe…

Todo mundo?! Que todo mundo? E que merda esse povo sabe da minha vida que nem eu sei?!

Cara, o que falam por aí é que você é filho do Diabo.

O quê???

É, ué… Todo mundo fala isso. Ninguém nunca te falou isso?

Muleque, cê tá de sacanagem pro meu lado, tá?

Peraí, Roque Esculacho! Deixa eu te explicar. O pessoal fala que cê é filho do Diabo porque ninguém sabe de onde cê veio, quem são seus pais…

Porra, Muleque Remelento! Isso eu não sei mesmo, mas nem por isso vim do além, né? Você não pode acreditar nessa conversa de tia bitolada que vive na igreja se lamentando da vida que não vive pra ficar falando da vida dos outros!

Cê acha que eu acredito?! Tô ligado que cê é gente como nóis… Quer dizer, mais ou menos como nóis…

Como é que é??? Mais ou menos, por quê?

Ah, cara, cê é esquisitão. Usa essas camiseta cavernosa de rock, parece coisa do Diabo mesmo.

Ih, Muleque… Cê não sabe que caveira é a coisa mais universal que existe, não? Todo mundo é uma caveira no final das contas.

Que loucura, Roque Esculacho! Nunca tinha pensado nisso! Pensei que era coisa de satanista, esse lance de caveira…

Xiii! Cê tá deixando essa cidade de merda zoar tua cabeça, hein! Quando passar lá perto de casa, me chama que te dou uma camiseta maneira.

Sério?! Pô, cara, demais!!! Era tudo o que eu queria. Valeu, Roque Esculacho, você é bem mais legal do que as pessoas falam. Nem é mais filho do Diabo...

Rá!Rá!Rá! Filho, não! Mas quem sabe eu não seja irmão do Diabo, Muleque Remelento? Quem sabe... Rá!Rá!Rá!


Ciência e probabilidade

Roque Esculacho passava tranquilamente perto de uma das muitas igrejas da cidade.

Escutava um disco do Slayer - Diabolus In Musica - e eis que vê o pastor sair correndo da casa ao lado, gritando no meio da rua. Como um louco desvairado.

- Meu Senhor, o que foi que eu fiz? Essa mulher me tentou, me fez cair em pecado!!! Por quê, Senhor? Por quê, eu?!

- Ora, ora, Mixaria! Quanto tempo, cara! Quer dizer que se regalou com a fiel e agora quer dar uma de coitadinho. Ora, vá se fuder, seu canalha!

- Eu não fiz nada! Ela... ela veio aqui em casa. Tramou essa história toda pra se vingar de mim. Só porque eu escolhi outra pra fazer a leitura dos evangelhos no culto.

- Sei... Mas a outra leitura você fez com ela, né? Leu e releu a história inteirinha, com todos os detalhes. Até fizeram uns ajustes no texto, não foi, seu safado?

- O que eu faço, Roque Esculacho? Não sei como ela conseguiu, mas levou um fio do meu cabelo e comprovou que o filho é meu. Olha, tá aqui o teste de paternidade.

- Ah, então teve festinha, mesmo! Vai ser papai, Mixaria. Parabéns, cara! Trabalhando um pouquinho você é capaz de criar essa criança numa boa. Você é putanheiro, faz tempo, mermão! Tá querendo enganar quem, hein?!

- Roque Esculacho, tô fudido! Vou perder minha vida no bem bom... Por quê? Por que a camisinha tinha que estourar logo comigo?! Filha da puta de uma ciência que não ajuda quando a gente mais precisa!

- Ah, larga a mão, Mixaria! Vai dizer que cê não sabia que, além do tesão, o estouro da camisinha também é uma probabilidade?!


Compromisso etílico

Após ser encontrado caído na frente da casa da Tina Mukirana, foi levado ao hospital e ali - enquanto a equipe médica fazia piadas sobre a malfadada sorte de nosso saudoso personagem - foi constatada a sua morte.

- Esse cara era um sem vergonha, safado. Vivia esperando na entrada do hospital pra ficar nos xavecando… - dizia uma das enfermeiras.

- Verdade, um canalha! O maior punheteiro da cidade. Nunca vi esse cabeludo escroto com nenhuma mulher. - complementava a recepcionista, enquanto ligava para a funerária.

- Já foi tarde, então. Menos um peso morto para a sociedade. - concluiu o médico, registrando causa da morte desconhecida no atestado de óbito.

Com a presença de seus dois fiéis amigos (Junkão e Fabião Mulambão) muito comovidos com a perda do parceiro de esbórnia, mais o Seu Tanaka – o dono do bar onde as farras sempre começavam – que esperava receber a conta de anos e anos de bebedeira e o fim da porralouquice desvairada em seu estabelecimento.

- Que merda, Roque Esculacho! Tinha que morrer logo hoje que a gente ia fazer uma festa na sua casa! - esbravejou Fabião Mulambão.

- Filha da puta até no final, esse desgraçado! Disse que hoje era tudo por sua conta. - concordou Junkão.

- E o meu dinheiro, hein? Quem é que vai pagar? Esse infeliz me enrolou desde que eu abri o meu bar! - berrou Seu Tanaka. Vocês vão ter que pagar!

- Ih, Seu Tanaka, a gente tinha deixado nossa parte da conta com ele! E o pessoal da funerária deve ter passado a mão na grana toda para pagar pelo serviço. - respondeu Junkão.

- Pois é, Seu Tanaka. O Roque Esculacho tava com todo o dinheiro para pagar. Que tragédia, bem hoje que a gente ia provar para você que o quanto somos honestos e sempre honramos nossos compromissos. - reforçou Fabião.

Enquanto a conversa seguia tranquila sobre esses assuntos super oportunos para a ocasião, os enlutados parceiros de Roque Esculacho foram convidados a retirar o caixão e levá-lo em sentido ao cemitério.

Ao chegarem ao lugar onde Onório Caveirão abria a cova para o descanso eterno de Roque Esculacho, as lágrimas corriam por todos os rostos.

- Qué isso, gente! Esse fila da puta não vale essas lágrimas todas, não! Só mais um corpo podre para os vermes se esbaldarem! Sorte deles que não têm moral; caso contrário, se negariam a se envolver com coisa tão desprezível. - advertiu o coveiro.

Nesse momento, Fabião Mulambão solta do celular uma música do Judas Priest - Breaking the law e eis que caixão começa a se mexer e Roque Esculacho levanta, puto da vida.

- Caralho, o que aconteceu?! Por que cês tão chorando, seus otários?

- Porra, Roque Esculacho! Cê quase mata a gente de susto! Cê não tinha morrido, não?! O dr. Plínio Picareta preencheu até o teu atestado de óbito! - gaguejou Junkão.

- Morrido?! Cês tão delirando?! Só tava descansando um pouco depois te ter cumprido meu compromisso etílico do dia! Médico de bosta esse aí, hein!

- Que loucura, Roque Esculacho! Você é o desgraçado mais sortudo que existe. Vamos comemorar tomando umas no Seu Tanaka!!!

- Só bebem se acertarem a conta de mais de anos, seus desgraçados!

- Pô, Seu Tanaka, deixa de ser tão interesseiro! Ainda mais numa hora dessa, quando o nosso amigo volta à vida. Toda a nossa grana foi gasta com o enterro dele. Cê não tem coração, não? - negociou Mulambão.

- Dinheiro?! Claro, claro… Puxa, logo hoje que a gente ia acertar toda a nossa conta, Seu Tanaka! Não liga, não. Ano que vem a gente acerta tudo. Vamu lá, abre aquele buteco que hoje é mais um dia e a gente tem muitos compromissos pra cumprir! - arrematou Roque Esculacho.


Fama intergaláctica

Certa vez Roque Esculacho caiu de gaiato em uma festa e, depois de tomar algumas cervejas mornas e quase enlouquecer ouvindo uma série de músicas que ele detestava, sentiu que estava na hora de dar o fora. Pois ali – contrariando a normalidade – ele é que estava sendo azucrinado.

Seguindo em direção à porta da sala, sentiu que precisava usar o banheiro. Viu o tamanho da fila, mudou de opinião imediatamente e optou por um plano B: aliviar-se no fundo do quintal.

E foi lá que aconteceu o que ele chamou depois de “checagem da obviedade”. Sem que pudesse demonstrar qualquer reação, lá estava ele dentro de um ambiente estranho, nas garras de seres mais estranhos ainda.

- Ei, que porra é essa?! Por quê? Como vim parar aqui nesse laboratório?! A gente… A gente tá voando?!

- Relaxa, Roque Esculacho! Nós só queremos fazer uns testes em você. He...he...he…

- Testes?! Que merda de teste o caralho! Me solta que eu tô a fim de mijar.

- Sossega, cara! A gente tem que ver o que se passa com esse seu cérebro de minhoca para fazer tantas merdas durante tanto tempo seguido.

- Quem… quem são vocês?

- Somos seres de outra dimensão, se isso te deixa mais tranquilo.

- Que mané seres de outra dimensão! Cês tão falando a minha língua, seus filhos da puta!

- A gente vem estudando você há um bom tempo. Todo o seu cérebro vem sendo mapeado e a sua língua já está decodificada, o que foi muito fácil diante do seu limitado e esdrúxulo vocabulário.

- Correto, Annald! Nunca vimos nada tão escroto em nossa longa existência.

- Sei… Cês tão é com inveja do papai aqui!

- Inveja?! Cê tá louco, cara! Sua mente não tem nada de útil, por isso resolvemos INTERVIR.

- Peraí, intervir como?

- Calma, só vamos ver se conseguimos substituir umas pecinhas, alterar algumas conexões entre os seus escassos neurônios, retirar um bom tanto desse lixo que você carrega aí dentro e ver como você se comporta daqui pra frente.

- Seus desgraça…

Após ouvir as explicações, nosso personagem caiu no sono induzido pela ação de alguma droga que corria em suas veias desde o momento em que foi capturado.

- É, Ofred… parece que esse cara não tem jeito. Nada do que a gente tentou dá resultado.

- Pois é, Annald… A mente desse imbecil está mais fechada que uma ostra dentro de sua concha. Já esgotamos nossas possibilidades.

- Vamos devolver esse mané ao seu habitat que a gente ganha mais. Puta perda de tempo!

- Maldita hora que resolvemos melhorar o que não dá para ser melhorado! Se tivéssemos ficado jogando paciência, teríamos feito mais progresso em nossas pesquisas.

- Exato! Vamos deixar esse idiota e cair fora. Com essa experiência fica claro que esse indivíduo desacredita qualquer tipo de pesquisa científica. É melhor nem registrar essa experiência em nossos arquivos; caso contrário, perderemos nossa credibilidade.

- Concordo em gênero, número e grau, meu caro Ofred!

E assim Roque Esculacho foi deixado semi acordado no quintal da casa onde rolava a festa que ele procurava escapar.

- Onde cê tava, Roque Esculacho?! - perguntou Ratão.

- Ih cara, nem te conto porque cê não vai acreditar.

- Fala aí, não vai me dizer que cê foi abduzido!

- Isso, foi isso o que aconteceu! Puta experiência louca, cara!

- Puta merda, véio! Cê encheu a cara, hein! Caiu aí e agora vem com esse papinho furado pra cima de mim!

- Pô, Ratão, os caras tavam impressionados com a minha inteligência e me pegaram como referência…

- Referência? Você?! Ah, cara, só se for de cagadas e merdas que a humanidade deve evitar para não entrar em extinção antes do tempo.

- Porra, Ratão! Não avacalha, não. Assim cê desacredita do poder da minha mente, pô!

- Poder?!

- É, cara. Logo logo cê vai ver que a minha fama já atingiu o nível intergaláctico. Posso ser o responsável pela salvação da nossa espécie.

- Cara, cê só encheu a lata ou tomou mais alguma coisa?

- Puta que o pariu, Ratão! Sei que a verdade dói, sempre é negada no primeiro momento, mas depois as pessoas acostumam. O pai aqui agora é uma referência!

- Tô ligado! E não é de hoje, Roque Esculacho! RÁ-RÁ-RÁ…


Roque enjaulado

- Mão na parede, seu delinquente!

- Perdeu, perdeu! Agora cê se fudeu, ladrãozinho de merda!

- Ei, peraí! Eu… eu não sou quem cês tão pensando!!!

- Vamo logo! Encosta aí na parede e vai abrindo as perna!

- É isso aí! E é melhor ir passando as coisa que cê roubô do mercado do Seu Chico Teta!

- Não roubei nada, soldado! Cabei de sair do Sebo Napalm ali na esquina. Tá aqui os discos que acabei de comprar, pô!

- Soldado?! É senhor, tá entendendo! SENHOR!!! (Tapas na cara e bicudas nas pernas de nosso herói).

- Deixa eu ver essas merdas aí, passa pra cá!

- SENHOR, eu não roubei nada. Cês tão me confundindo… Tó, mas cuidado porque aí só tem raridade! Só sonzeira de primeira qualidade!

- Raridade, é? Hum… Esses discos de cabeludo drogado é tudo coisa de vagabundo. (Cola brincos e chute no saco pra demonstrar o poder que compete às autoridades).

- Porra, não joga os discos assim! Eu não fiz nada, já falei! Acabei de sair do sebo. Tava indo trampar de roadie com a banda No Inferno Todos Tão.

- Que mané roadie, o caralho! Isso lá é nome de banda? Tá tirando a gente de lóki, é?

- Vamo levá esse bichinha cabeludo pra delegacia, Osvaldão. Lá eu tenho certeza que ele fala onde escondeu os produto. Certeza que fala! Rá-rá-rá...

- Peraí, de-le-ga-cia?! Por quê??? Eu não fiz NADA! Cês são novos na cidade, né? Pode perguntar pra qualquer um aí, eu não sou ladrão!

E assim Roque Esculacho foi esculachado mais uma vez.

No caminho até a delegacia, depois ouvir os policiais combinarem a venda dos seus discos através da internet, foi informado dos vários métodos usados nos interrogatórios daquela instituição super respeitada.

- Vai descendo aí que a sala de interrogatórios já tá preparada pra te receber! - disse Zezão da Quebrada.

- Com toda a hospitalidade que você merece. - complementou Osvaldão.

- Eu não fiz nada! Cadê o delegado? Ele me conhece, cara!!!

- Conhece, é? Então, vamo vê. Só que ele não tá aqui agora. Daqui umas 3 hora ele chega.

Depois de muitas horas enjaulado, eis que surge o delegado de plantão.

- Boa dia, senhores! O que temos pra hoje?

- Dia, seu Roberto Coronhada, achamos o meliante que roubou o mercado do seu Chico Teta ontem à noite. Só tá faltando ele confessar…

- Mas isso é moleza, né, chefe! Deixa com a gente!

- Xiii… Mas esse é o Roque Esculacho! É o malucão da cidade, mas é inofensivo. Figura carimbada, tem a cara e o jeitão de bandido, mas não é, não.

- Porra, eu falei pro cêis! Agora perdi o busão da banda e meu trampo como roadie. Quem vai pagar minhas contas? E cadê meus discos, hein? Eu nem paguei o cara ainda!

- Que porra de discos! Cê não tinha nada! Tava limpo, não tava Zezão?

- É verdade, Osvaldão! Ele não tinha nada!

- Vamo, tá na hora cair fora, roqueiro filho da puta! He...he...he…

- Devia tá feliz de se livrar dessa e fica aí falando merda, manézão do caralho! Vai, circulando, circulando…


A distorção necessária

Após deixar a prisão, Roque Esculacho caminha apressado em direção à sede da banda No Inferno Todos Tão.

Assim que Zangão avista a figura ímpar de nosso personagem vindo pela calçada, desce da van e vai logo intimando:

- Porra, Roque Esculacho! Onde cê tava, cara? Te arrumo o trampo e você não aparece! Tive que carregar e montar tudo sozinho ontem.

- Foi mal, Zangão! Mas saí da delegacia agora.

- Delegacia?! Que merda cê aprontou, hein?

- Uns policiais novos na cidade me confundiram com o ladrão do mercado do Seu Chico Teta e fiquei lá a noite toda!

- Sei… Encheu a cara e agora vem com essa conversinha fiada pra cima de mim, é?

- Verdade, cara! A cidade inteira tá falando. Logo cê vai saber o que rolou...

- Bom, vou falar pros cara que cê deu as caras... Se eles concordarem, hoje à noite tem show de novo.

- Valeu, Zangão!!! Te devo essa, hein!


- Pronto. Limpei a sua cara, Roque Esculacho. Agora, vai pra casa, arruma suas coisa e vem pra cá o mais rápido que conseguir, porque temos que dar um trato nas tralhas e instrumentos da banda.

- Beleza!

- Ah, e vê se toma um banho decente, pois cê tá fedendo, mermão! Tá parecendo um cambá, caraleo!

- Pô, Zangão, não avacalha, não! Cê acha que cadeia é hotel 5 estrelas, é? Mó chiqueiro aquele lugar!

- Tá, tá… Agora vai logo que a gente tem que tá com tudo em cima até o começo da tarde pra cair na estrada.

- Podeixá! Já já tô de volta.

Munido de sua mochila, Roque Esculacho retorna à sede da banda e percebe os olhares inquisidores e já nem se espanta com as pessoas apontando pra ele durante o trajeto.

- Manhê, ó o cara que tava roubando o mercado ontem!

- É verdade, meu filho! Mas não aponta não, que é feio!

- Já tá solto, seu cretino?! Devia mofar na cadeia, seu ladrãozinho de merda!

- Cês tão me achando bonito é por isso que tão me admirando, é? Cambada de fofoqueiros, lazarentos! Cês nem sabem o que rolou… Vão se fuder antes que eu me esqueça! - pensa nosso personagem injustiçado.

- Entra logo, filho! Esse cara é perigoso! Olha só o tipinho dele!

Depois de ajeitarem a van com os equipamentos necessários, a banda e os 2 roadies partem rumo à cidade de Quaresma Furada, onde acontecerá o show.

- Pô, Roque Esculacho! Que quebrada essa estrada, hein? - indaga Zangão no volante.

- Bota quebrada nisso, Zangão! Essa cidade não tá com cara de ser agitada, não!

- Será?! Os caras que marcaram o show falaram que é a cidade do rock, véio! E que os ingresso estão vendendo super bem de tanto que gostam da banda!

- Sei não, hein! Isso tem cheiro de roubada…

- Bom, foda-se! A gente tá fazendo o nosso trampo e a banda já recebeu o cachê. O show vai rolar!

- Isso aí, rock ‘n’ roll! - confirmam os músicos.

Depois de rodarem quase a tarde toda, chegam à Quaresma Furada no início da noite e vão logo para local onde acontecerá o tão esperado show.

Nesse meio tempo, percebem que as pessoas não param de apontar e fazerem o sinal da cruz para a van que leva o nome da banda estampado na portas laterias.

- Cês viram aquela tiazinha acenando pra gente?

- Achei que ela tava benzendo a gente, cara!

- Essa noite vai ficar pra a História!

- Só!

- Chegamos!

Zangão e Roque Esculacho descarregaram e montaram as aparelhagens e os instrumentos da banda no palco. Na sequência, os músicos passaram o som e foram todos em busca de uma janta para aguentarem o baque da noite.

Um pouco antes do show, os roadies reparam que os amplificadores e os pedais das guitarras haviam desaparecido do palco.

- Caraleo, cadê as aparelhagens, Zangão?!

- Como isso pôde acontecer? A gente só foi bater um rango e já sumiram com os cubos e os efeitos!

- Falei pro cê que essa história tá estranha!

- Vamo ver com o técnico de som da casa. Se pá foi ele que mexeu nas parada…

Assim que encontraram o cara, ficaram sabendo que os cubos foram retirados, pois na cidade havia uma lei que não permitia o uso de distorção nas guitarras.

- Como é que é? - estranhou Roque Esculacho.

- Contrataram a banda No Inferno Todos Tão pra tocar aqui e não permitem usar distorção?! - insistiu Zangão.

- É isso mesmo, a mulher do prefeito – junto com algumas outras senhoras do bem – conseguiram aprovar essa lei essa semana! - explicou o técnico de som.

- Porra, mas que furada, hein! Falei pro cê que essa parada tava com cheiro de armada, Zangão!

- Bom, sendo assim, acho que não vai rolar show nenhum!

- Como não vai rolar?! A banda já recebeu o cachê, cês já jantaram nas nossas custas… É só usar os cubos que meus parceiros tão montando no palco, pô!

- Cê tá louco, cara? Aqueles multi uso não dão conta do som, não! Nós trouxemos os ampli e as distorções dos caras, o som já tinha até sido passado. Agora era só chegar e tocar!

- Negativo, meu camarada! Distorção aqui NÃO rola. É que eu não tava aqui a hora que cês passaram o som. Se insistir a Dona Fátima Beata traz a polícia e prende todos vocês!

- Fátima Beata?! Festa?! - questionou Zangão.

- É, me diz aí, que show de rock é esse que não tem guitarra distorcida? Cês não viram o nome da banda, não? - desafiou Roque Esculacho.

- Ué, essa banda não é gospel?!

- Gospel?! - exclamam os roadies, indignados.

- É… falaram pra mim que era uma banda gospel que só usa violão e que já tocou em vários encontros de jovens pelo Brasil todo.

- Bendito Black Sabbath!!!

- Me diz uma coisa: sem distorção, como é que o público daqui vai enlouquecer, bater as cabeças?

- Enlouquecer?! O povo daqui não faz isso não, meu camarada! Eles vêm pra se divertir, não pra curtir essas músicas de doidão! Os jovens daqui são jovens do bem, não cultuam o Diabo, não!

- Fudeu, Zangão! O jeito é avisar os caras e cair fora dessa merda. Imagina só curtir um som, viver a vida desse jeito, sem a distorção necessária. Não tem Cristo que aguente! - declarou Roque Esculacho.

- É, té nunca mais, Quaresma Furada! - completou Zangão.

- Seus… seus picaretas! Cês vão ter que devolver a grana, cambada de roqueiros babacas!