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30 de abril de 2013

Desenho animado

Eu sou um monstro e, como todo bom monstro, eu faço monstruosidades. Atormento a vida das pessoas. Emporcalho a cidade. Eu restauro o desconforto. Provoco o embaraço. Não trago esperança. Muito pelo contrário. Deixo o caos reaparecer no horizonte da vontade. Recoloco a tensão. Destranco os cadeados. Desfaço, sem culpa, os laços que as leis garantem assegurados. Aterrorizo. Expresso a incoerência, a carência de evidências das crenças mais arraigadas. Derrubo as estacas que cercam o campo das possibilidades. Sem dó nem piedade. Para o sentir. O pensar. E o agir que se sabem perecíveis. Não aceitarem como realidades, verdades ou normalidades somente os fatos que lhes forem mais favoráveis. Esconder-me e esconder-se não conseguem aliviar. Qualquer um pode constatar.

27 de abril de 2013

A lógica de Marta

Marta estava cansada. Tencionada, carregava voluntariamente a sua carga para, no final do dia, poder vê-la de volta ao ponto onde a decisão também se iniciava. Com os frutos deste trabalho sobrevivia, comprava coisas, se mantinha dentro dos cenários. Viajava e os prazeres da vida nunca lhe bastavam. Alternava as escusas para melhor ajustar-se. O pior era ainda ter que dizer que estava tudo bem. Que, na chegada, uma boa recompensa a aguardava. Fora preciso humildade para reconhecer que não saltava. Quanto mais escondia, mais essas sensações se mostravam. Pouco importava se usava os produtos mais caros para a sua beleza e a sua bondade invejáveis. Quanto mais aparecia, menos sua insignificância lhe abandonava. E ela se desesperava. Revoltava-se. De familiarizada consigo mesma e com o mundo, ela se debatia agora com o alcance impreciso de suas ideias mais aclamadas. Acadêmica pós-graduada. Autoridade em determinado campo do conhecimento que sempre lhe escapava. Era-lhe necessário um pouco de silêncio para perceber o que o seu orgulho soterrava. Visitas às fraternidades. Incontáveis braçadas pelas superfícies criadas. Comportamento ecologicamente correto para um fiel praticante dessa rotina alucinada. Sua estante repleta de livros muitas vezes fora julgada como sinônimo de erudição, conhecimento, e, consequentemente, ganho de causa. No entanto, representava uma procura interminável de uma alma sem qualquer preciosidade. Perdia-se e, ao contrário do que esperava, não se encontrava. Esmagava-se sob estes problemas porque estava em busca de soluções, não tolerava mais dentro de si estas ideias imantadas. Causas eternas e consequências variadas.

20 de abril de 2013

Nauta


...Silvestre. Comédia. Dona Laura. Escancara! Palavras que me vem à mente. Palavras que nos foram ensinadas. Inventadas ao longo de nossos tempos. Transformadas quando não mais significavam. Vivências. Impressões de expressões necessitadas. Silvestre poderia ser o nome dado ao personagem. Poderia ser qualquer alternativa para que a fala não se cale. Para que os olhos continuem vendo. Para que nosso olfato nos ajude a compreender o outro. Também em suas particularidades. Para que continuemos ouvindo as composições da natureza na acústica projetada pela sociedade. Para que a alma continue perscrutando. Sobretudo a sua indestrutibilidade. Tateando palavras. Respirando os sons de um novo comentário. Sonhando com todo esse material há muito já guardado. Ideias mescladas com ideais. Palavras que continuam sendo formas a serem interpretadas. Nas cavernas da pós-modernidade. Nos nossos mais requintados habitats. Palavras, frases inteiras, imagens cantadas. Fluxos e refluxos na universal tentativa de nos vermos mais aproximados. Comédia: sentidos que são afetados. Instigados a reagirem. Construindo outras representações sobre possíveis verdades. Dona Laura. Como recriar o que só foi sentido naquela sala? A partir daquela fala, daquele gesto, daquela troca que eu nunca havia experimentado? Marcas que são impressas em nossas integridades. Postergados são os raciocínios. As escolhas para capturarmos, só por alguns instantes, nossas sensações mais vitais. Trazendo às claras noções aproximadas. Definindo, assim, suas próprias gramáticas. Tão falíveis e indeterminadas quanto nós. Animais civilizados. Escancara! Foi esta a sua dica para mim que estava vendo-o pela primeira vez. Não esperou por algo tão formal para demonstrar que se sentia conectado. Indireta e diretamente. Sofrendo a intervenção dos mesmos astros. Chamava-se Cláudio e veio a perecer em mais uma destas clínicas onde dopam, sedam, amarram, dão cabo às anormalidades. Seu pecado: esquizofrenia. Cantava, lavando a louça do almoço, antes de tomar mais um pouco de café, acender mais um cigarro e retornar ao seu quarto: “Sim. Eu estou tão cansado. Mas não pra dizer. Que eu não acredito mais em você. Com minhas calças vermelhas. Meu casaco de general. Cheio de anéis. Eu vou descendo por todas as ruas. E vou tomar aquele velho navio. Aquele velho navio. Talvez eu volte. Um dia eu volto. Quem sabe! Mais eu quero, eu preciso esquecê-la. Oh, minha grande. Oh, minha pequena. Oh, minha grande. Obsessão”...

Vincent - Tim Burton

Perfeito - Mauricio Bartok

7 de abril de 2013

Morte, livros e convívio

– Enquanto estou vivo, vou tentando atribuir sentido à minha vida. Procurando entender o que a minha espécie sentiu, pensou, construiu e destruiu ao longo do seu tempo, para não agir como se fosse um deus que reinasse sobre todos os outros indivíduos.
Não era uma pessoa vulgar, dessas que se dão bem com qualquer um e em qualquer circunstância, para agradar sua autoestima. Ele havia escolhido, repensado o infantilismo e chegado à conclusão de que a maioria é vulnerável demais para ser seguida e prepotente demais para ser respeitada em seus egoísmos. Agia levando em consideração também a sua intuição. Assumia que vivia.
– No fundo, todos os livros são de autoajuda – refletia. – No entanto, não simpatizo com aqueles que são escritos e distribuídos com esta finalidade explícita, porque estes não passam de promessas que não podem ser cumpridas. Curas infalíveis para os males de um espírito flexível? Esse tipo de livro serve bem quem admira, gosta de imitar gente que se julga bem sucedida, tão bem sucedida que acredita que anda fazendo o bem dando lições para que os outros também embruteçam as suas consciências, os seus já tão decantados juízos críticos. Olhar uma flor e pensar como ela seria útil, mesmo morta, seria o melhor indício de nossa sabedoria?
– Você não tem casa, família, mulher, filhos? – perguntou-lhe uma menina que o observava há um bom tempo, sempre de longe, tentando se esquivar daquela visão que a feria e a atraía de uma forma irresistível.
– Não, eu não tenho casa, não tenho filhos e as duas mulheres que amei ou se entregavam demais – vendo em mim sua salvação definitiva – ou não se entregavam de jeito algum – porque acreditavam que se doando, se perderiam. Mundo confuso o nosso, garota. Extremista. Mundo em que as pessoas preferem pagar para fingirem que não correm nenhum risco. Insegurança coletiva gera canibalismo. Mutilação vira hábito. Moeda corrente no dia a dia...
– Coitado! – descarregou a menina. – Então, minha mãe estava certa quando me falou que você não passa de mais um desses loucos que abandonam tudo porque são covardes demais para vencer na vida.
– Ora, quem disse que eu abandonei alguma coisa?! Ainda não encontrei o que queria, mas não desisti. Vencer é fácil, garota! Basta a gente encontrar um bom meio de passar o maior número de pessoas para trás, como se tudo não passasse de uma corrida, mas eu não quero isso, nunca quis.
– Você é esquisito! Fala cada coisa... Por isso todo mundo pede pra gente tomar cuidado com você. Que você deve ser algum foragido da polícia, afinal, o que você carrega neste saco aí?
– Carrego minhas roupas, alguns livros, minhas ferramentas para trabalhar engraxando as portas dos comércios que precisam...
– Mentira! Você deve ser um assassino, alguém que fez tanto mal por aí que agora precisa se esconder para suportar a feiura de sua vida. Maldita hora que pensei em vir até aqui perder meu tempo com você e as minhas manias.
– Curiosidade! Isso faz a gente ir interpretando o mundo, conhecendo nossos limites...
– Ah, já vem você com esse papo furado. Não demora e você vai me dizer que estudar é algo bom. Todas aquelas porcarias que meus professores acham maravilhosas, mas que a gente não dá à mínima.
– Eu?! Não, não tenho essa pretensão. Só você pode querer, aprender, entender e explicar para si mesma o quê faz com que a gente, por exemplo, esteja aqui falando, sendo ouvido e até compreendido pelo outro...
– Ah, você não é normal. Diz essas besteiras e quer que a gente ainda o respeite. Já pensou no perigo que corre vivendo assim?
– Já pensei. Penso sempre sobre isso, mas não posso negar o risco, devo corrê-lo, se quiser conservar minha parcela de altruísmo necessária para não viver só pra mim...
– Eu desisto! – gritou enfurecida, antes de virar as costas para aquela coisa humana que se sentava embaixo das árvores e lia, observava, refletia, com um olhar brilhante, algo que ela quase já não via.

4 de abril de 2013

O eremita

Sapatão furado
Calça rasgada
Camisa remendada
Plantava, colhia, cuidava
Tomava banho no rio
Convivia
Naturalmente integrado
Ignorava
Toda a retórica
Sobre este tal de desenvolvimento sustentável
Palavras que não condizem com o que se vê
Quando produção e consumo não vão além de
Relações entre exploradores e explorados.