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15 de agosto de 2014

Como você reagiria se não houvesse julgamento?

Faria as mesmas escolhas?
Ou acredita que seu destino lhe impeliria a ter os mesmos comportamentos?
Seria sempre o mesmo, determinado por uma essência, até se descobrisse que nasce, cresce e morre aprendendo e desaprendendo?
Se pudesse mudaria algum detalhe?
Ou está inteiramente satisfeito com seus erros e acertos?
Preocuparia-se mais com o bem dos outros e menos com as atitudes que eles não aceitam?
Continuaria se queixando das dificuldades, ou mergulharia nas contradições para ao menos debatê-las?
Se acaso a dúvida aparecer, o que você pretende fazer?
Procurará compreendê-la?
Ou tentará removê-la imediatamente?
Será ao menos um pouco sincero?
Ou terá de recorrer à força e à justiça de algum dragão ou serpente?
Em algum céu ou inferno onde os castigos e as recompensas que, repetindo os padrões de educação adotados aqui na terra, finalmente encontrariam algum fundamento?
Por mais que isto improvável lhe pareça
Considere as probabilidades
De sua genética lhe sugerir outros argumentos
Para que haja adaptação e sobrevivência
Faz-se necessária a congruência de muitos processos
Que também do acaso dependem
Você abandonaria algumas crenças se elas porventura desprezassem o espaço-tempo?
O que há de original em você além da possibilidade de explorar a humanidade que também aos outros persegue?

13 de agosto de 2014

Fanfarra da culpa

Não encontrava desculpa
Para retornar às ruas
Marchava às escuras
Espalhando sua fúria

Estava tão segura
Que toda a atenção era só sua

Repassava a angústia
Repetindo a lamúria
Em cada compasso
Engessando a partitura

Cobrava
Intrometia-se

Conselheira punitiva
Esquecia-se que o seu sucesso também dependia
Da derrota de toda a sua estrutura.

Conjunto do medo

Ensaiava em segredo
Achava que ainda era cedo
Para encerrar seu concerto

Encontrava-se assim insatisfeito
Com a ausência de entrosamento

Permaneceria por mais tempo
Compondo novas canções
Mixando-as com velhos intentos

Só então subiria ao palco
Tornando público o seu contratempo

Demonstrando
Afinal
A que veio.

O assalto

        Tudo estava calmo, tranquilo, estável. As sensações eram boas e assim eu me convencia de que as impressões que construía correspondiam exatamente àquilo que acontecia de fato. Por dentro. Por fora. Em qualquer parte do que chamava de realidade. Tudo no meu corpo, seus órgãos, com seus músculos e fibras, artérias e veias, glândulas e secreções, cumprindo suas funções dentro de minhas estruturas celulares, parecia-me em seu mais completo estado. Era como se eu tivesse uma porção de vidas sendo vividas dentro de mim e que, para mantê-las assim, só bastava alimentá-las, e elas, por si só, como uma espécie de milagre, se encarregariam de fazerem todo o mecânico trabalho. Sentia-me como o comandante, o responsável, aquele que dava as ordens, cabendo a mim somente o desfrute de toda a empreitada. Jamais seria como aqueles simples e discretos funcionários que para prosseguirem com suas vidas precisavam sujar suas mãos e até se juntarem à massa. E era justamente com esta imagem incrustada em minha mente que eu, transbordante de alegria, caminhava. Observava e abordava as pessoas, reparava em algumas árvores, voava junto das inúmeras espécies de pássaros que minha fantasia insistia que continuavam coabitando na mais perfeita paz em todas as partes de nossa invejável cidade. Mas, eis que de repente, fui assaltado por uma gangue de pensamentos totalmente contrários às minhas vontades. Era como se o chão desaparecesse e eu, como num sonho, tentava em vão resistir à queda batendo minhas asas imaginárias. Todo o meu organismo agia para lidar com estas reações, não me restando forças senão para entregar-me. Perdido, prostrado, fiquei sem o menor resquício da antiga autoestima que me acompanhava. Só depois, muito tempo depois, é que pude compreender o que realmente havia me afetado. Uma simples lembrança acabara despertada e eis que o meu suposto controle chegava ao fundo dos mares. Acabei reduzido a uma espécie de jangada que não resistira aos vários saques de um navio pirata. Desnorteado, minha fala abalada pelo terror que de mim se apossava, com a respiração e a circulação profundamente alteradas, sentia meu coração batendo descompassado, recebendo e enviando mensagens desconexas – através de meus desgastados sistemas – ao meu cérebro que, naquela eternidade, não me servia para mais nada. Carregado de energias que proviam dos mais incompreendidos lugares, sem que pudesse canalizá-las para que conseguisse enfim me recompor e continuar minha viagem, fui mais uma vez (na verdade, esses movimentos se manifestaram quase que todos ao mesmo tempo, minha percepção é que se demorou tanto para registrá-los) surpreendido por outro ataque. Agora, eram os meus nervos que se revoltavam. Extremamente desnorteados, sem o habitual equilíbrio entre a tensão e o relaxamento, não me permitiram levantar-me. Cai exausto, sentindo as vertigens, a condição extremada que estas sensações encontraram para se expressarem e, se não fosse encontrado a tempo, confesso que teria desistido, e ali, naquela ilha remota para aonde havia sido transportado pelas ondas que não se acalmavam, minha matéria teria se reintegrado. O fato é que após os delírios, a febre intensa e a desidratação que não terminava, fui recobrando aos poucos alguns de meus sentidos e, com muito pesar, acabei reconhecendo minha ignorância sobre aquele súbito ataque. Um simples estímulo, uma dor que julgava já ter me livrado, após ter passado a odiá-la com todas as forças que acreditava serem necessárias, gerara uma corrente que às outras facilmente se conectava e que eu, no auge da minha prepotência de animal civilizado sequer ponderava, fizeram com que eu compreendesse que meu modo de estar, me enxergar e me expressar, carregava uma boa carga hereditária que, assim como em alguns de meus antepassados terrestres ou mesmo aquáticos, tanto me ajuda como me alça às mais variadas emboscadas na incansável busca por alguma continuidade. Graças a estas pessoas de corpos pintados e que felizmente já haviam abandonado o canibalismo que eu mesmo praticava em meus sonhos de criatura alucinada pela sentença de que nada importava mais do que conseguir ser feliz e obter prazeres infindáveis, que me ensinaram ser a justa medida para acabar condecorado, continuo vivo e bem menos certo, porém cada vez mais ligado ao que dentro de mim também se passa e frequentemente exala. Minhas emoções, minhas palavras, meu jeito singular e ao mesmo tempo comum de representar e exteriorizar o que há tanto tempo nos intriga saber de onde vêm, para onde vão, quais são, enfim, suas finalidades. Uma lição eu aprendi: muito do queremos esconder voluntariamente, pode e se revela de uma forma ainda mais intensa, pela força do hábito, das associações e imitações que, muitas vezes involuntariamente, fazem nossas expressões se desencadear até quando estímulos similares surgem e são percebidos por todo o conjunto que sabe que é o nosso viver que precisa de outras coordenadas para nos localizarmos. E se hoje faço este relato, é com o rosto corado por uma timidez que me acompanha e que percebi que contra ela nada posso, pois, quanto mais tento, esforçando-me para barrá-la, mais meu sangue invade e irradia por toda a minha face. Todos estes sintomas são as expressões de estados de espírito velhos ou novos que nos acompanham, fazendo-nos ver que não passamos de organismos vivos dentro da vida que, geração após geração, nos perpassa.

6 de agosto de 2014

Noticiário

Encontrar pessoas e cumprimentá-las
Sem qualquer pretensão senão a de lembrá-las
De que a terra é enorme
Os alimentos são muitos
E a miséria é farta
Enxergá-las
E, por este simples motivo, saudá-las
Para que possamos, enfim, nos reconhecer e até considerarmos
A possibilidade de que somos nós
Ao menos em parte
Os criadores das intrigas e de muitas das desgraças
Que talvez nem nos surpreendam mais
Após assisti-las aos montes
Em cada horário ou programa
Em que as emissoras, com seu jeito parasitário,
Escolhem para nos mostrá-las.