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13 de agosto de 2014

O assalto

        Tudo estava calmo, tranquilo, estável. As sensações eram boas e assim eu me convencia de que as impressões que construía correspondiam exatamente àquilo que acontecia de fato. Por dentro. Por fora. Em qualquer parte do que chamava de realidade. Tudo no meu corpo, seus órgãos, com seus músculos e fibras, artérias e veias, glândulas e secreções, cumprindo suas funções dentro de minhas estruturas celulares, parecia-me em seu mais completo estado. Era como se eu tivesse uma porção de vidas sendo vividas dentro de mim e que, para mantê-las assim, só bastava alimentá-las, e elas, por si só, como uma espécie de milagre, se encarregariam de fazerem todo o mecânico trabalho. Sentia-me como o comandante, o responsável, aquele que dava as ordens, cabendo a mim somente o desfrute de toda a empreitada. Jamais seria como aqueles simples e discretos funcionários que para prosseguirem com suas vidas precisavam sujar suas mãos e até se juntarem à massa. E era justamente com esta imagem incrustada em minha mente que eu, transbordante de alegria, caminhava. Observava e abordava as pessoas, reparava em algumas árvores, voava junto das inúmeras espécies de pássaros que minha fantasia insistia que continuavam coabitando na mais perfeita paz em todas as partes de nossa invejável cidade. Mas, eis que de repente, fui assaltado por uma gangue de pensamentos totalmente contrários às minhas vontades. Era como se o chão desaparecesse e eu, como num sonho, tentava em vão resistir à queda batendo minhas asas imaginárias. Todo o meu organismo agia para lidar com estas reações, não me restando forças senão para entregar-me. Perdido, prostrado, fiquei sem o menor resquício da antiga autoestima que me acompanhava. Só depois, muito tempo depois, é que pude compreender o que realmente havia me afetado. Uma simples lembrança acabara despertada e eis que o meu suposto controle chegava ao fundo dos mares. Acabei reduzido a uma espécie de jangada que não resistira aos vários saques de um navio pirata. Desnorteado, minha fala abalada pelo terror que de mim se apossava, com a respiração e a circulação profundamente alteradas, sentia meu coração batendo descompassado, recebendo e enviando mensagens desconexas – através de meus desgastados sistemas – ao meu cérebro que, naquela eternidade, não me servia para mais nada. Carregado de energias que proviam dos mais incompreendidos lugares, sem que pudesse canalizá-las para que conseguisse enfim me recompor e continuar minha viagem, fui mais uma vez (na verdade, esses movimentos se manifestaram quase que todos ao mesmo tempo, minha percepção é que se demorou tanto para registrá-los) surpreendido por outro ataque. Agora, eram os meus nervos que se revoltavam. Extremamente desnorteados, sem o habitual equilíbrio entre a tensão e o relaxamento, não me permitiram levantar-me. Cai exausto, sentindo as vertigens, a condição extremada que estas sensações encontraram para se expressarem e, se não fosse encontrado a tempo, confesso que teria desistido, e ali, naquela ilha remota para aonde havia sido transportado pelas ondas que não se acalmavam, minha matéria teria se reintegrado. O fato é que após os delírios, a febre intensa e a desidratação que não terminava, fui recobrando aos poucos alguns de meus sentidos e, com muito pesar, acabei reconhecendo minha ignorância sobre aquele súbito ataque. Um simples estímulo, uma dor que julgava já ter me livrado, após ter passado a odiá-la com todas as forças que acreditava serem necessárias, gerara uma corrente que às outras facilmente se conectava e que eu, no auge da minha prepotência de animal civilizado sequer ponderava, fizeram com que eu compreendesse que meu modo de estar, me enxergar e me expressar, carregava uma boa carga hereditária que, assim como em alguns de meus antepassados terrestres ou mesmo aquáticos, tanto me ajuda como me alça às mais variadas emboscadas na incansável busca por alguma continuidade. Graças a estas pessoas de corpos pintados e que felizmente já haviam abandonado o canibalismo que eu mesmo praticava em meus sonhos de criatura alucinada pela sentença de que nada importava mais do que conseguir ser feliz e obter prazeres infindáveis, que me ensinaram ser a justa medida para acabar condecorado, continuo vivo e bem menos certo, porém cada vez mais ligado ao que dentro de mim também se passa e frequentemente exala. Minhas emoções, minhas palavras, meu jeito singular e ao mesmo tempo comum de representar e exteriorizar o que há tanto tempo nos intriga saber de onde vêm, para onde vão, quais são, enfim, suas finalidades. Uma lição eu aprendi: muito do queremos esconder voluntariamente, pode e se revela de uma forma ainda mais intensa, pela força do hábito, das associações e imitações que, muitas vezes involuntariamente, fazem nossas expressões se desencadear até quando estímulos similares surgem e são percebidos por todo o conjunto que sabe que é o nosso viver que precisa de outras coordenadas para nos localizarmos. E se hoje faço este relato, é com o rosto corado por uma timidez que me acompanha e que percebi que contra ela nada posso, pois, quanto mais tento, esforçando-me para barrá-la, mais meu sangue invade e irradia por toda a minha face. Todos estes sintomas são as expressões de estados de espírito velhos ou novos que nos acompanham, fazendo-nos ver que não passamos de organismos vivos dentro da vida que, geração após geração, nos perpassa.

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