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28 de setembro de 2011

Flexibilidade

Tenho um sério problema quando o assunto é flexibilidade. Sabe, quando alguém diz “cada um é cada um e a gente deve aproveitar a vida ao máximo, respeitando todas as opiniões e vontades”. Tenho um grande problema quando escuto que dentro de uma cultura, cada família, cada indivíduo escolhe livremente seus próprios valores, acredita em sua própria verdade. Fico surpreso quando me dizem que as diferenças são tão diferentes que a gente não deve sequer pensar que são elas que nos tornam ao menos um pouco mais iguais. Quando vejo que as diferenças são absorvidas como mais alguns motivos para a gente investir pesado na indústria da guerra e tirar algum proveito, representar alguma sensação de superioridade. Em algum palco desse teatro, no centro da periferia desse mercado onde o que se compartilha é a opressão, a massificação das personalidades. Quer dizer que devemos respeitar alguém que compreende que o aparelho administrativo é uma espécie de pódio capaz de alçá-lo a posição de chefe, líder, delimitador das suas e das outras necessidades básicas? Quer dizer que devemos respeitar alguém que tem fé de que há justiça neste mundo, só porque há leis, penas, multas, concursos, serviços comunitários, juízes, advogados, sociólogos, estatísticos e agentes penitenciários? Quer dizer que devemos respeitar alguém que tem um diploma e que se julga na obrigação de convencer/conscientizar/ajudar a maioria marginalizada/alienada graças a essa mesma seleção artificial que o colocou no direito de receber essa gratificação convencionada pelos deturpadores dos fatos? Quer dizer que devemos respeitar as atitudes dos policiais que espancam, torturam, humilham os pobres e abaixam a cabeça para os ricos, aceitando seus subornos, fazendo valer seus benefícios de guardiões desse esquema, sem desconfiar que são eles os maiores miseráveis? Se o mundo é corrupto, você não pode fazer nada, nada além de seguir a sua marcha? Especializar-se, preocupado com suas notas, seu currículo, nestes campos minados, pois assim estará fazendo a sua parte? Quer dizer que devemos respeitar a maioria que faz, além da sua, a minha, a nossa vida ser tão efêmera como as experiências nestas ilhas dos saberes institucionalizados onde o status é o pensador mais honrado? Conivência tem limites. Concorrência cansa, degrada, não faz nosso mundo artificial parar de progredir, para poder reciclar-se, abandonar essa inversão patriótica da novidade. Hitler tinha suas razões, você bem sabe! Os alemães que acionavam as câmaras de gás conheciam os fins que se buscava com aqueles meios importados. Os americanos que bombardearam Hiroshima e Nagasaki não viam seres humanos em seus alvos? Os portugueses que massacraram as populações indígenas são tão inocentes quanto os brasileiros que lucram com o turismo sexual? Chega de achar que nossos atos são neutros e que não refletem nem retornam para o nosso habitat. O papa tem fé na oração e reza quase todo santo dia dentro do seu castelo sagrado porque ali sua prataria garante sua santificação, seu poder sacralizado diante dos soldados. O padre fala da vulgaridade exibida nas novelas, mas anda de carro importado, veste só roupa de marca, ouve todos os sucessos da moda, pregando em sua igreja os ensinamentos de um mártir igualmente deturpado em sua criação tão deformada. O pastor exibe vídeos de catástrofes naturais e sociais e enriquece, fazendo muita caridade, comprando os diplomas e as subsequentes possibilidades de seus filhos, graças ao terror previamente estabelecido, estrategicamente calculado em cima dos salários de seus fiéis cada vez mais curvados por se ludibriar com essas entidades. O pai de família bem sucedido acredita e propaga a ideologia do trabalho que dignifica e cumpre seu papel na difusão dos rituais. Quer curtir sua aposentadoria fazendo muitas viagens. Conhecendo muitos lugares, gerando mais desigualdades às vítimas e aos parceiros desta simulação do sentimento de paz e unidade. A mãe deixa o filho na escolinha como se essa fosse uma espécie de depósito, de guarda-volumes para o seu fardo. A outra, bem mais abastada, não vê a hora de matricular a sua prole numa instituição respeitada para que ela não perca aquele cargo que a colocará ainda mais em destaque frente à sua comunidade. Isso quando os dois, homem e mulher, não agem, pensam, sentem seus relacionamentos e os filhos que deles muitas vezes advêm como uma questão de pensão, de dinheiro e de trabalho, a ser pago e recebido, como a prostituição que me ofereceram hoje à tarde, cumprindo assim suas responsabilidades. Por favor, me deixem de lado! Não quero ser incluído nessa liberalidade. Meus músculos estão tão tensos e minhas juntas já não aguentam toda essa carga, a estupidez desta raça que esquece e concorda com essa fatalidade. Seja você o funcionário! Leve adiante este seu plano de carreira e morra quando perceber que foi você o maior enganado. Mas não se preocupe: você sempre esteve sendo filmado! Avaliado, tributado, esperado como intelectual sedado por suas próprias oportunidades. É desencorajador perceber que você não vê que esse respeito forjado é a base para esse sadismo que você vem se acostumando a chamar de cuidado para não parecer precipitado.

21 de setembro de 2011

Autópsia

Ah, se minhas âncoras funcionassem. Se meus laços me mantivessem preso. Ah, se minhas asas me suspendessem. E minhas decisões fossem apenas exagero, covardia, vontade de chamar a atenção e ser aceito. Ah, se tudo não passasse de simples desespero. Se minhas contas e meus objetos me prendessem a este mundo e não me levassem a caminhar por essas estradas tão desertas. Ah, se meu salário significasse apenas uma necessidade satisfeita. Se o fato de conseguir tempo para contemplar a beleza natural, estabelecer novas amizades, viajar para outros lugares, me fizessem mais contente. Ah, se pudesse ignorar e me tornar mais um destes crentes que entendem e pregam que as adversidades são provações, prorrogando a felicidade para não serem julgados como pecadores ou doentes. Se minha carreira fosse algo que pudesse levar a sério. Ah, se desse crédito aos governos e acreditasse que os órgãos que os fiscalizam são competentes. Se os diplomas fossem algo honesto, algo que todos pudessem escolher livremente. Ah, se as profissões não fossem um ranço de uma cultura que coloca o saber como sinônimo de ascensão e de luta entre os diversos segmentos. Ah, se esta carapaça me protegesse. Se esta sensação de realização que você me fala também me convencesse. Ah, se o estranhamento não houvesse se tornado minha principal referência. Talvez não pensasse nos fundamentos para minhas conivências. Talvez sequer cogitasse mergulhar tão profundamente nesse mar de autodestruição consciente. Talvez não me sentisse como um pária, mais um comparsa de toda essa cena de controle e manutenção da miséria como pilar para as vantagens dessa gente que abdicou da própria espécie, torcendo apenas para que, mediante pagamento, os profissionais os ouçam e os ajudem a manterem-se ausentes – para si mesmos e para os outros – que também acreditam no sucesso de nossos tratamentos.

17 de setembro de 2011

Ternura

Tão sincero este seu jeito. Não há complexidade em sua simplicidade. Você fala calada, se expressa sem excessos de palavras, de gestos ou de contatos. Só, porque sempre soube que estaria só e não seria só. Desde o seu cultivo, passando pelo local onde foi exposta e escolhida com uma simbologia associada, até chegar num dia tão quente aqui nesta casa. Você sorri e eu vejo, sinto, sei que seu sorriso é terno. Chora para fora e para dentro, inundando a terra, apaziguando a alma. Aceita minha ajuda, não se zanga com meus cuidados desajeitados. Tão próxima. Tão distante. Floresce. Carece. Transcende. Necessita. Entrega-se. Cede. Vive. Não deixa. Mantém-me. Em conjugação com todo o planeta. Você não é minha, Ternura. Você é fruto de vários atos de delicadeza. De toda uma natureza em busca dos verdadeiros sentimentos. Uma lembrança. Deste mundo que se esconde cada vez mais para dentro. Uma promessa. De um ser. Que, como todos nós, para pertencer, precisa de carinho para melhor se desenvolver. Perdão por não encontrar outro jeito de lhe acolher. Sou tão estúpido que sempre exagero ou negligencio meu amor por você.

14 de setembro de 2011

Vagabundo

        Queria acreditar nestas coisas que me disseram. Queria, mas não posso. Não posso porque não passaram de palavras. Palavras ditas ao acaso, sem qualquer significado. Estavam preocupados. Sempre estamos. Como relógios, eles vivem atarefados. Iludidos. Confortados. Só paramos quando alguma falha no mecanismo – fruto dessa correria insana – nos atinge, tomando todo o nosso ser, fazendo-nos humanos. Covardes. Queria acreditar nestas conversas. Levar adiante meus sentimentos, pensamentos, meus planos. Queria, mas não consigo. Porque quase todos acreditam em coisas que eu, pouco a pouco, fui desacreditando. Simplesmente foi assim. Desacreditei de tudo e de todos. Não me sentia bem em qualquer lugar. Não me encontrava, mesmo me sentindo aceito. Sempre a mesma coisa: horários, trabalhos, salários. Lazer infectado. Gente descolada. Galera reunida. Corações engessados. Sempre a mesma coisa: quem fica com quem, quem trai quem, quem se acha mais que quem. Argh! Todas essas relações e eu lá, tentando achar um sentido. Tentando pertencer, querendo não mais participar. Um monte de gente, fingindo viver em cooperação, mas no fundo competindo para ver quem causa a maior sensação. Lembro que durante minha infância minha mãe dizia que eu deveria temer qualquer mendigo carregando sua trouxa que visse nas ruas ou nas estradas por onde passávamos. Certo dia, enfrentando meu medo, conversei com um vagabundo que passou pelo açougue onde trabalhava, pedindo algo para comer. Dei-lhe umas salsichas e fiquei olhando-o guardar o "alimento" para o momento certo – cheio de receio, com muita curiosidade e até com pena (na época acreditava em deus e julgava-o como um fracassado, porque não estudou, não queria trabalhar. Enfim, eu estava cheio dessa ideologia do fracasso como incapacidade pessoal). Ele deve ter percebido minha piedade e não se fez de coitado, aproveitou a deixa para me ensinar algo que marcou profundamente minha vida. Disse que teve família, casa, carro, enfim, tudo o que acreditava ser honesto e digno de felicidade, mas não aguentou as trapaças e se convenceu de que andar era o que queria e podia fazer. “Fiz minha trouxa e sai andando”, foi o que ele disse. Engraçado, aquilo me impressionou muito mais que as histórias dos livros ou dos desenhos que passavam pela tela da televisão. Foi como a primeira vez que reparei na lua ou nas estrelas e desejei estar bem longe de onde eu estava. Ele resistia pacificamente. Caminhava. Parava. Conversava calma e pausadamente. Ele tinha coragem, encontrou uma alternativa. Eu não. Nunca fiz minha mala, mesmo que isso era exatamente o que meu coração me sugeria a cada discussão ou ameaça que me faziam para continuar. Agora sinto que chegou a hora, mesmo porque perdi minha capacidade de ser convencido, perdi minha paciência e me transformei num intolerante quando o assunto é a vida que construímos e que vamos deixar como base às nossas crianças. Um egoísta. Um ermitão tentando, em vão, se socializar. Tentando não me iludir com essas ideias de que não estamos em guerra, que não fazemos parte dessa fraude (porque somos diferentes, temos consciência e fazemos nossa parte), que não há gente com fome, não há miséria em nosso olhar, e me afastar cada vez mais desse mundinho bonito e feliz dos paraísos artificiais.

12 de setembro de 2011

Também estive aqui

Para aprender, passamos pelos órgãos do Serviço de Educação Obrigatória. Objetivo: respeitar – incondicionalmente – os mais velhos, obedecer àqueles que mais se iludem com as promessas do poder de humilhar. Jamais responder. O espírito do mal, a anti-matéria, pode, milagrosamente, nos castigar. Estudar com compromisso (copiar, decorar) os fatos, as datas, as fórmulas, os conceitos. Imitar os exemplos, resolver exercícios, se alfabetizar em outra língua, passar no vestibular. Pagar impostos, tirar carteira de motorista, cumprir com as obrigações da junta civil e militar. Se preparar para enfrentar o mundo, conquistar o sonho que não é nosso. Competir para nos realizar. Sentindo tudo isso como uma necessidade desnecessária quando vivemos tentando achar alguma brecha, alguma fresta por onde possamos escapar, mesmo sem vida, da tirania deste lugar. Lendo um jornal, preparando o jantar, namorando, planejando qual brinquedo queremos comprar. Quais destes jogos preferimos jogar? Qual vocação será a nossa justificativa para continuarmos a reproduzir esse ataque nuclear? Com o tempo, a gente vai vendo que essa mente pensa sobre o corpo do qual pertence, mas está tão distanciada dele que chega a parecer impossível fazê-la voltar. Com o tempo, a gente vai encontrando válvulas de escape, a gente vai conseguindo se adaptar, vai aceitando, ajudando a naturalizar o superficial jeito de amar. Só o tempo para nos domar. E a gente cada vez com menos espaço para andar. Subia no telhado para poder respirar. Passava tardes inteiras batucando em panelas velhas para me safar. Escondia-me onde não os ouvisse brigar. Fugia para ver se conseguia me encontrar. Fugia soltando pipa, jogando futebol. Fugia quando recebia o aval para brincar. Fugia e, como hoje, não pensava em voltar. Eles aplicavam, praticavam consigo mesmos as regrinhas básicas: sorrir, mentir, e, na pior das hipóteses, se desculpavam, para que as portas ficassem sempre abertas à sua ambição de ganhar. Festejar o que lhes foi dado, instituído para estarem só de passagem, pois outra vida era e infelizmente ainda é tudo o que podem imaginar. Será que, como eu, eles já haviam se cansado de tentar?

9 de setembro de 2011

Sol do luar

Escrever é agir. Se espreguiçar. Escrever é também se esconder. Resignar. Não é resolver. Escrever é lembrar. Reinventar. Tentar chegar. Caminhando sem parar. Saciar. Reproduzir. Procriar. Parar o tempo e deixá-lo passar. Escrever é devanear. Deixar fluir. Sair e entrar. Desconhecer-se. Cada segundo mais. Escrever é amar o ódio. Odiar amar. Simultaneamente saber, sentir, querer. Voltar a viver. Se distanciar. Para sobreviver. Naufragar. Fazer suposições. Brincar de formar juízos. Escrever é fantasiar. Se iludir. Tentar remediar. Mixar justificativas para se confortar. Mesmo que não tenha nada para falar. Escrever é forjar. Tramar. Mentir encorajadamente. Poder bisbilhotar. Escrever é ostentar. Levantar e cair. De um mar ou mesmo de um céu que você nunca soube onde está. Escrever é o que você acha que é. Escrever, para mim, é um jeito de ouvir. Pedir socorro. Sem conseguir ajudar. Escrever é se blindar. É fazer uma faxina. Escrever é prorrogar. Olhar a chuva. Respirar. Romper os tímpanos. Caçoar do paladar. Escrever não é traduzir. Expressar. Escrever é absorver a melodia e se arrepiar. Não é só se vingar. Estudar métodos e técnicas e não se contentar. Escrever é exibir o medo sem se importar. Carecer de equilíbrio. Escrever é adotar. Cuidar de um ser vivo que você não precisou conquistar. Escrever não é seduzir. Escrever é envenenar o próprio sangue. Trocar uma porção de palavras pela sensação de agradar. Dialogar. Segurar com firmeza as mãos para que parem de chorar. Que parem de bater. Que parem de computar. O futuro dessas crianças tão velhas que vão para as escolas para compensar. Escrever é desenhar. Uma moldura para outra estrutura familiar. Escrever é acordar. É constatar que, apesar dos sonhos desta noite ensolarada, quase tudo ainda continua no mesmo lugar.

3 de setembro de 2011

Sören Kierkegaard

O desesperado pode conseguir – e isto é, sobretudo, verdadeiro para o desespero que se ignora – perder o seu eu, e perdê-lo tão completamente que não fiquem vestígios.”

Ai de nós que nos entretemos e que se entretêm as multidões com tudo, exceto com aquilo que importa! Que as conduzam em rebanhos... enganando-as, ao invés de as dispersar, de isolar cada indivíduo, para que sozinho se consagre a atingir o fim supremo.”

Perante essa miséria eu bem poderia chorar uma eternidade inteira! E mais um horrível sinal desta doença – a pior de todas – é o seu segredo."

A eternidade duma só coisa inquirirá: se a tua vida foi ou não de desespero, e se, desesperado, tu ignoravas sê-lo, ou soterravas em ti esse desespero, como um segredo angustioso, como o fruto de um amor criminoso, ou ainda se, horrorizando-os mais, desesperado, gritavas enfurecido. E, se a tua vida não foi senão desespero, que pode então importar o resto! Vitórias ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te dá como seu, ela não te conheceu, ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!”

Assim a consciência, a consciência interior, é o fator decisivo. Decisivo sempre que se trata do eu. Quanto mais consciência houver, tanto mais eu haverá. Pois que, quanto mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais eu quanto maior for a vontade.”

Tornar-se si mesmo é tornar-se concreto. Ao contrário, o eu que não se torna ele próprio permanece, saiba ou não, desesperado.”

Como o sentimento se torna imaginário, o eu evapora-se mais e mais, até não ser ao fim senão uma espécie de sensibilidade impessoal, desumana, doravante sem vínculo num indivíduo.”

Quando uma das suas atividades – querer, conhecer ou sentir – se perdeu assim no imaginário, todo o eu corre igualmente o risco de nele se perder, e abandonando-se voluntariamente ou se deixe levar. Em ambos os casos permanece responsável. Então leva uma existência imaginária, infinitizando-se ou isolando-se no abstrato, sempre privado do seu eu, da qual consegue afastar-se cada vez mais.”

 “Para alguém que seja assim presa do imaginário, um desesperado portanto, a vida pode muito bem seguir o seu curso, e, semelhante à de toda gente, estar plena de temporalidade, amor, família, honras e considerações. Provavelmente ninguém se aperceba de que num sentido mais profundo esse indivíduo tem necessidade de eu.”

O eu não é destas coisas a que o mundo dê muita importância. É aquela que menos curiosidade desperta e que mais é arriscado mostrar que se tem. O maior dos perigos, a perda desse eu, pode passar tão despercebido dos homens como se nada tivesse acontecido.”

O mundo só fala de indigência intelectual ou estética ou de coisas indiferentes porque a tendência é dar um valor infinito às coisas indiferentes. A reflexão de quase toda gente prende-se sempre às nossas pequenas diferenças, sem que, naturalmente, se dê conta da nossa única necessidade.”

 “A contemplar as multidões à sua volta, a encher-se com ocupações humanas, a tentar compreender os rumos do mundo, este desesperado esquece-se de si mesmo, não ousa crer em si mesmo e acha demasiado ousado sê-lo e muito mais simples e seguro assemelhar-se aos outros, ser uma imitação servil, um número, confundido no rebanho.”

Polido como um seixo, o nosso homem gira dum lado para o outro como moeda corrente. Bem longe de o tomarem por um desesperado, é precisamente um homem como a sociedade o quer.”

 “Aos olhos do mundo o perigo está em arriscar, pela simples razão de se poder perder. Evitar os riscos, eis a sabedoria.”

Ordinariamente, os homens estão longe de considerar como supremo bem a relação com a verdade, sua relação pessoal com a verdade, como estão longe de concordar com Sócrates em que a pior das infelicidades é estar em erro. O mais das vezes, neles os sentidos têm mais força do que a intelectualidade. Ordinariamente, quando alguém se julga feliz e se envaidece por isso, ao passo que à luz da verdade é um infeliz, está a cem léguas de desejar que o tirem do seu erro. Zanga-se, considera como seu pior inimigo aquele que o tenta, e como um atentado e quase um crime esse modo de proceder e, como costuma dizer-se, de destruir sua felicidade. Por quê? Porque é presa da sensualidade e duma alma plenamente corporal; porque sua vida conhece apenas as categorias dos sentidos, o agradável e o desagradável, e descuida do espírito, da verdade, etc. Porque é demasiado sensual para ter a ousadia, a paciência de ser espírito.”

A necessidade da solidão revela sempre a nossa espiritualidade, e serve para dar a sua medida.”

Esse é precisamente o caminho a percorrer, que te conduzirá, pelo desespero do eu, ao teu verdadeiro eu. O que dizes da fraqueza é verdadeiro, mas não é dela que deves desesperar. Devemos despedaçar o eu para nos tornarmos nós mesmos.”

Todavia o desesperado não faz senão contemplar-se, pretendendo assim conferir aos seus empreendimentos um interesse e um sentido infinitos, quando é apenas um fazedor de experiências.”

O que mais falta quando nos extraviamos, é sempre aquilo em que não pensamos – evidentemente, porque pensá-lo seria encontrarmo-nos.”

 “Nesse sentido, seria necessária à nossa época, e é talvez a sua única necessidade, uma tal correção de ética e de ironia.”

Dessa forma vivem talvez multidões de pessoas. Trabalhando, como que insensivelmente, para obscurecer o seu juízo ético-religioso, que os leva a decisões e conseqüências que reprovam a parte inferior deles mesmos. No lugar daqueles, desenvolvem em si um conhecimento estético e metafísico, o qual, para a ética, não é senão divertimento.”

A maioria das pessoas vive por demais inconscientes de si para suspeitar quais sejam as conseqüências. Devido a uma ausência do vínculo profundo do espírito, a sua vida, seja por encantadora ingenuidade infantil, seja por necessidade, não é mais do que uma mistura sem nexo de um pouco de ação, de acaso, de acontecimentos. Vemo-las umas vezes praticar o bem, depois fazer mal. Certas vezes o seu desespero dura uma tarde; outras prolonga-se durante três semanas, e ei-las prazenteiras, e logo desesperadas por mais um dia. Para elas a vida é uma espécie de jogo em que se entra, mas não chegam nunca a arriscar tudo, nunca ela se lhes representa como uma conseqüência infinita e fechada. Por isso não falam nunca senão a respeito de atos isolados, essa ou aquela boa ação, tal falta.”

Correria ela o risco de ser arrancada dessa totalidade que suporta a sua vida?”

Se o mundo quer ser enganado, que seja enganado então.”