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21 de setembro de 2011

Autópsia

Ah, se minhas âncoras funcionassem. Se meus laços me mantivessem preso. Ah, se minhas asas me suspendessem. E minhas decisões fossem apenas exagero, covardia, vontade de chamar a atenção e ser aceito. Ah, se tudo não passasse de simples desespero. Se minhas contas e meus objetos me prendessem a este mundo e não me levassem a caminhar por essas estradas tão desertas. Ah, se meu salário significasse apenas uma necessidade satisfeita. Se o fato de conseguir tempo para contemplar a beleza natural, estabelecer novas amizades, viajar para outros lugares, me fizessem mais contente. Ah, se pudesse ignorar e me tornar mais um destes crentes que entendem e pregam que as adversidades são provações, prorrogando a felicidade para não serem julgados como pecadores ou doentes. Se minha carreira fosse algo que pudesse levar a sério. Ah, se desse crédito aos governos e acreditasse que os órgãos que os fiscalizam são competentes. Se os diplomas fossem algo honesto, algo que todos pudessem escolher livremente. Ah, se as profissões não fossem um ranço de uma cultura que coloca o saber como sinônimo de ascensão e de luta entre os diversos segmentos. Ah, se esta carapaça me protegesse. Se esta sensação de realização que você me fala também me convencesse. Ah, se o estranhamento não houvesse se tornado minha principal referência. Talvez não pensasse nos fundamentos para minhas conivências. Talvez sequer cogitasse mergulhar tão profundamente nesse mar de autodestruição consciente. Talvez não me sentisse como um pária, mais um comparsa de toda essa cena de controle e manutenção da miséria como pilar para as vantagens dessa gente que abdicou da própria espécie, torcendo apenas para que, mediante pagamento, os profissionais os ouçam e os ajudem a manterem-se ausentes – para si mesmos e para os outros – que também acreditam no sucesso de nossos tratamentos.

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