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11 de dezembro de 2014

Jardineiros do céu e do mar

Não esperavam o gelo derreter
Para se moverem
E então escorrerem até onde pudessem trabalhar
Atacando a natureza como se disso dependessem tanto quanto do ar

Não esperavam o vendaval passar
Insistiam em continuar
Prendendo o cavalete em estacas
Subindo em árvores para pintar

Van Gogh e tantos outros e outras
Que também escolheram pela arte viver
Sem, no entanto, terem com o que se manter
Ou uma pousada que não fosse os despejar

Acreditavam que poderiam deixar ao menos esboços
Que as futuras gerações saberiam melhor aproveitar
Questionavam o que acabavam de criar
Constantemente sentindo que haveriam de se superar

Tentando encontrar
Um meio de chegar às cores
Que aos desenhos conseguissem acrescentar
Escrevendo em guardanapos, colhendo as paisagens da noite em um bar

Expressando o que a junção do coração e da mente
Persistia em os inspirar
Registrando suas impressões
Mesmo quando os corvos de dentro, as suas plantações, destruíam sem parar.

24 de novembro de 2014

Criar

Cavar, plantar, regar
Adubar, esperar brotar e, se precisar, podar
Até que as raízes estejam fortes
E o restante da estrutura comece a desapontar

Crescendo como uma vida
Que para tanto há de se transformar
Adaptando-se e diferindo
Participando para poder se integrar

Então, arrancar e transportar
Deixar descansar para novamente tratar
Desempenar, serrar
Martelar, parafusar e lixar

Entalhar, envernizar ou pintar
Imaginar formas que talvez consigam lhe agradar
Fazendo da matéria recolhida
Um objeto que possamos usar

E que um simples olhar seja capaz de,
Em qualquer tempo, nos identificar
Escolher, enfim, um lugar
Para o dispor a fim de nos ajudar

Desenvolvendo os sentidos
Que façam da arte um meio
Que o homem mantém
Para com a natureza não se afastar.

16 de novembro de 2014

Cada um na sua

Cigarra cantando no quarto
Enquanto ainda havia sono
E o alarme insistia que já deveria estar pronto
Para trabalho
Cigarra e humano se debatendo
Buscando vida ao invés de emitir só um canto morto
Uma sacudida na cortina e eis que se dá o encontro
Com espanto mútuo a cigarra é conduzida à janela
Voando rápido
Visando uma árvore
Além do muro.

10 de novembro de 2014

Bagagem

Preciso repensar minha forma de pensar
Rever o que insiste em habitar
Reconhecer o que se escondeu
Por não haver uma estrutura
Mas estruturas que não foram capazes de o suportar
Preciso encontrar o que ainda não expressei
Por medo ou culpa de não agradar
Entender que autonomia e liberdade
Se constroem através do que a gente faz
Junto a um meio em que alguns com isso sequer vão se importar
Lembrar que construímos ideias, imagens e ideais
E que podemos muito bem nos enganar
Sobre os objetos, fatos ou as pessoas que queremos explicar
Mas que, ainda assim, não há motivos para abdicar
De tentarmos nos aproximar
Comunicando o que carregamos dentro
Como uma bagagem que nos acompanha
Para onde quer que a gente vá.

7 de novembro de 2014

Elementar

Lembrar de rimar
Separar para juntar
Cada palavra em uma frase
Para continuar a transformar
O conjunto em texto com o que mais lhe inspirar

Despertar a memória
Colocando-a a par
Dos sentimentos que mantém o corpo em contato com o ar
Atravessar os limites do seu tempo e lugar
Por meio das tramas que conseguir inventar

Apontar
Tentar descrever
Conjecturar
Querer e se dispor a captar
Diferentes perspectivas para não deixar a chama apagar

Mergulhar
Abandonar a embarcação para aprender a nadar
Percebendo o que o liga à terra
Para fazer-se capaz de viver e conviver
Sem se desmanchar.

2 de novembro de 2014

Pedalada

         Ainda no asfalto viu uma carta de baralho jogada na sarjeta, bem em frente ao bar que ficava próximo de sua casa. Uma dama de ouro pela metade, com a inconfundível coroa, símbolo da nobreza que somente a poucos abençoava... O que estaria fazendo uma dama como aquela em frente a um bar? – ironizou, pensando em como os pensamentos podem se ramificar diante das mais simples casualidades. Pelas estradas de areia, encontrou velhos sapatos, de mulheres, homens e crianças, lembranças que uma família inteira já não precisava, uma cadela que se escondia no meio do mato para proteger os seus dois filhotes que, assim como ela, também correram assustados quando ele os encontrou igualmente por acaso. Coincidências que acarretavam as mais diversas reações. Voluntárias e involuntárias. Quais motivos a levaram a ficar por ali (era a segunda vez que os via, assim como suas pegadas), se, pela aparência, não lembravam em nada uma raça de cachorros do mato, mas antes a que conhecia como vira-lata? Será que sofrera tantos maus tratos a ponto de preferir fugir da domesticidade, cuidando dos seus em um ambiente mais selvagem? Ouvindo NOFX no walkman que um velho grande amigo lhe dera, quando era o que mais precisava, seguia tranquilo em sua jornada. Mesmo que se perdesse algumas vezes em meio aos canaviais, encontraria aquele lugar que há um tempo vira, mas não pode apreciar, pois ali um casal supostamente pescava. Apesar de lhe parecer estranho o fato do homem esconder a mulher atrás de seu corpo quando ele passara. Uma represa, rodeada por uma mata, onde o frescor era tão intenso que o fazia sentir, compreender o que motivara muitos a largarem a vida nas cidades mais abastadas para com a natureza um maior contato celebrarem. Após alguns minutos, intuiu que estava perto, pois já se beneficiava do oxigênio renovado que as plantas, nestes lugares, costumam produzir sem o menor interesse sobre o bem o ou mal que de suas ações podem resultar. Pedalou mais um pouco e eis que viu o que tanto procurava. Lá estava a água, as margens e as árvores que a circundava. Um bela represa, na verdade, mais uma propriedade particular com uma placa que alertava sobre a proibição da caça e da pesca como intuitivamente esperava se tratar. Não que quisesse praticar alguma destas atividades. Tudo o que queria era contemplar, sentindo, associando o que lhe chegava com as lembranças que guardava. Após o que chamaria êxtase, voltou à estrada e continuou seguindo, sempre beirando a mata, até ser retirado de seu estado de entorpecimento quando uma lebre cruzou o seu caminho a toda, espantada pela sua presença naquele espaço onde, naquela época, provavelmente poucos homens por ali passavam. Corria como uma desesperada, e ele não pode deixar de pensar sobre o instinto de sobrevivência que age sobre todos os animais. Como a areia havia se acumulado naquele trecho, visto que a água das chuvas por ali escoava, quase perdera a direção, tamanho o susto que a lebre provocara. Também ele reagiu como se estivesse ameaçado. Recuperado, dava boas pedaladas, pois como ainda era cedo, queria ver até onde poderia chegar. Não tardou e viu um filhote de tamanduá passar correndo, talvez estranhando a presença daquele humano por aquelas paragens. Notara que só havia as marcas de pneus de uma moto, já quase apagadas. Retirou os fones dos ouvidos, pois imaginou a quantidade de pássaros e outros animais que deveria haver no interior daquela mata, visto que de tempos em tempos, a indústria que arrendava toda aquela terra para transformá-la em extensos canaviais, ateava fogo antes de colher a cana para ser, em sua própria usina, processada. Quantos não seriam mortos a cada período de safra graças a estas práticas tão civilizadas? Será que aquelas espécies julgavam as leis humanas como contrárias às leis naturais, como ele as julgava? Teriam tempo de se reproduzirem? Às aves ainda restava o recurso de migrarem, mas e os animais terrestres, quais seriam as suas táticas? Não tardou a encontrar uma fazenda com algumas casas, ouvir vozes humanas, o latido dos cachorros, o que lhe bastou para lembrar-se que sequer sabia aonde estava, que usara muitos atalhos e que muito provavelmente se perderia até encontrar o caminho de volta. Escurecia e o nosso personagem pedalava, entre a cana, chegando às cercas que demarcavam as extensões imensas daquelas propriedades. Pensava que dispunha da lanterna de seu celular, caso demorasse tanto para reconhecer uma coordenada que o ajudasse a se localizar. Isso o tranquilizou, tomando um bom gole de água... Ligou o walkman, Fat Mike gritava por mudança, ironizava a tacanha moralidade humana, reivindicava através da música uma liberdade que apenas figurava nas constituições, mas que na prática acabava desprezada... Para não me estender em suas idas e voltas por entre os carreadores dos canaviais, vamos alçá-lo aos caminhos que gravara e que, com a ajuda da lua que poupou o uso da luz artificial, o levaram a enxergar as luzes da cidade, e assim, após algumas músicas de um novo disco que já se iniciara, chegou à sua casa. Pronto para preparar uma janta que, após o banho que foi tão refrescante, devorou como se estivesse há anos sem sentir o seu próprio paladar.

30 de outubro de 2014

Os sistemas

     Toda vez que algo fugia à previsibilidade – e esta era a regra, não a exceção, como muitos acreditavam – instalava-se dentro daquela sociedade um clima de idolatria e pouquíssima solidariedade. As ideias, desacostumadas àquelas reflexões que pedem um pouco mais de profundidade, tinham, assim, de se virarem para locais, pessoas e situações até então ignoradas. Inseguras, confusas, sem nada daquilo que poderia torná-las ao menos um pouco confiantes para tentar uma sugestão que parecesse razoável, apressavam-se em associar quaisquer causas a quaisquer efeitos, sem, no entanto, considerarem as peças de suas próprias engrenagens.
     – Achamos os culpados – era o que se comentava nos poucos momentos em que as pessoas realmente se juntavam para ouvirem e escrutinarem outras possibilidades. – Agora, só precisamos achar um meio de reformar nosso sistema para logo retornarmos à nossa mais que merecida normalidade. Em rede nacional, aqueles que eram vistos como os únicos capazes de debaterem e indicarem as saídas para aquela calamidade, batiam com as mãos sobre o aço como meio de se livrarem dos maus presságios.
     – Por pouco estes imprestáveis não nos levaram à ruína! Imaginem uma economia que não esteja acima dos que por ela trabalham!!! Seria um sistema que não demonstraria a menor finalidade! Que os novos técnicos encontrem logo este defeito, pois alguns lunáticos já começaram a apontar novos responsáveis por toda esta algazarra. Referem-se a si mesmos como parte do problema, pois – segundo eles – somos nós mesmos, os aqui vivem ou viveram, que escolheram, escolhem, fizeram e ainda fazem este sistema deixar de ser prático.
     – Ora, o que é que eles sabem? Na justa divisão das tarefas, não elegemos estes técnicos para fazerem os ajustes, mantendo nosso sistema em seu mais perfeito estado?! Que eles façam, então, a sua parte e nos deixem em paz com as nossas vidas diárias! Afinal, já temos nossas preocupações e, se os escolhemos dentre as filas imensas de candidatos para estes cargos, porque não cumprem com o combinado?! Não demora, vamos ver manifestações e greves por todos os lados. E, desse jeito, todos teremos de nos ocupar da política (vejam só que catástrofe!) como meio de melhor nos organizarmos...
    – Às urnas, meu amigo, minha amiga, lutemos para que ele não acabe por conta destes técnicos irresponsáveis! Escolhamos outros mais bem preparados para fazerem desta comunidade o que ela sempre foi: uma comunidade sem conflitos, onde cada um ocupa a posição que merece e desfruta das riquezas de acordo com suas qualidades naturais!!!
     E era assim que se desenrolavam os preparativos para o que batizaram de “a festa da democracia popular”, festa esta que chegava ao seu ápice quando os dois mais celebrados ora acusavam-se pela usurpação dos recursos públicos em suas gestões, ora se vangloriavam por terem feito de tudo em “seus governos”, conseguindo isto, batalhando por aquilo, ampliando o que se convencionou chamar de benefícios para a massa esmagada, comovendo os cidadãos e cidadãs com sua retórica que versava sobre quase tudo, menos sobre propostas e metas, compromissos, afinal, que deveriam ser não só expostos, mas debatidos constantemente, em plebiscitos, inclusive com aqueles que, habituados à condição de mantenedores deste sistema em que poucos mandavam, muitos obedeciam, repleto das mais descabidas desigualdades, ainda assim o aceitavam como justo, pois a maioria, de tempos em tempos, assim o legitimava. Esperando que os novos carrascos fossem ao menos piedosos quando tiverem de bater ou matar para que a ordem e o progresso continuem sendo as velhas metas que todas as nações ainda hão de alcançar. Independente do suor, das lágrimas, das guerras, das sanidades ou dos planetas que estas ditaduras comandadas por estes discípulos de Narciso ainda possam vir a precisar.

14 de outubro de 2014

Estabilidade do estabelecido

Se retiraram mais um de seus direitos
E no lugar dele um conjunto de deveres usaram para substituí-lo
Não hesite!
Chame a polícia
Ofereça-se como parte do pagamento para assegurar a mercadoria
Recorra ao exército ou ao crime que só se organiza
Ligue para a vizinha, jamais aceite um favor se não puder retribuí-lo
Reclame desta mania que acabou se tornando coletiva
Proteste, expresse este vazio que tem sempre de ser preenchido
Cobre dos candidatos
Mesmo que só eles saibam do que o povo mais precisa
Demonstre o quanto lhe valeram os anos de escola, cantando todos os hinos
Cumpra com as suas obrigações para a continuidade desta quase democracia
Não deixe de tomar os seus remédios
Mantenha-se atento quando se formar a próxima fila
Não se esqueça de recolher todos impostos
Faça a sua parte
Demonstre piedade aos desassistidos
Comporte-se direitinho!
Coloque suas intenções na lista de orações que logo elas serão atendidas
Prove que você suporta chegar ao seu limite
E que pode prorrogar a sua realização até uma outra vida
Onde tudo é perfeito e a dignidade e a autonomia não são esquecidas
Vamos lá, continue sorrindo, aumente a sua oferta nos leilões dos delírios
Repita, quantas vezes for necessário, que as leis também são infalíveis
Que as propriedades não foram em algum momento instituídas
Que não há nada irrevogável além da morte que se anuncia
Pague a pensão, case-se com um bom partido
Planeje, parcele, invista pesado no seu tempo livre
Participe das estatísticas
Contribua com a inadimplência
Sinta-se feliz por não perceber esta tirania sobre a existência
Que te motiva a lutar por poderes ainda mais paternalistas.

13 de outubro de 2014

Amores

      Humberto gostava da Sofia, que estava com o Gustavo, que gostava da Quitéria, que ficava com o Salvador, que gostava da Adriana, que namorava o Wellington, que queria mesmo era estar com a Mariana, que gostava da Catarina, que saía com o Rafael e com a Tatiane, que estavam loucos para conquistar o Henrique, que não estava nem aí para ninguém. Divertia-se com quem aparecesse, pois sentia que assim teria alguma aventura para distraí-lo e livrá-lo da angústia que o fazia enlouquecer. Letícia gostava do Ramon, que não estava satisfeito com o seu casamento com a Júlia, mas que não tinha coragem de terminar. Talvez pelo medo de magoar ou por não desejar ver seu nome associado a tudo que ele mesmo, quantas vezes condenou, quando via acontecer. Por isso, ficava com as duas por querer manter uma aparência que nem a ele parecia convencer. Yves tentava encontrar alguém que o compreendesse. Alguém com afinidades capazes de fazerem de cada detalhe um sempre novo amor aparecer. Conheceu Luciana que queria se casar e viver feliz para sempre, mesmo que este para sempre durasse só até ela morrer. Casaram-se, tiveram 2 filhos, mas logo se separam, pois ambos não suportaram a rotina e novas experiências, com novos amantes, começaram a fazer. A monogamia, que antes era o ideal, deixou de os entreter. No entanto, as novas descobertas, tão logo se realizavam, levaram-nos a se sentirem tão vazios que acabaram retornando ao relacionamento que juravam nunca mais querer, talvez pela segurança que imaginavam os proteger sobretudo de si mesmos, mas o desgaste era tão explícito que não foram poucos os que podiam perceber. Todos continuam por aí, com ou sem parceiros, querendo companhia para na solidão e na loucura não se desfazer. Afinal, não procuramos nos outros aquilo que nos falta, também?! Não são nossos amores alguns dos sentimentos que mais nos mantém vivos, pois nos afirmam e reafirmam, conduzindo-nos à construção dos sentidos para continuarmos aprendendo a conviver, a ponto de, quando eles acabam, desejarmos simplesmente desaparecer?! Perguntando-nos, talvez, sobre como estas estranhas forças acabam colidindo de modo que a gente sinta todas as suas explosões e implosões interferindo no nosso jeito de continuar a responder?

30 de setembro de 2014

Prática repensada

Superar a ingenuidade
Transformando a curiosidade em criticidade
Para construirmos nossas e também nossa identidade
Com paciência, coerência, assumindo, então, nossa historicidade
Ressignificando os discursos dos que se querem como os ditadores da verdade
Entendendo a quem serve toda esta fatalidade disseminada
Fazendo-se humano com humanos que não se escondem
Educam-se todo instante, pois aprendem-ensinando que não estão prontos
Como comumente se acha
Deixando margem para que as probabilidades, os erros e a espontaneidade
Não sejam suplantadas pelos fanatismos
De quem entrega a vida para não encarar suas próprias fragilidades
Revendo os fatos
Analisando-os
Comparando-os com outros dados igualmente refutáveis
Agindo para que nossas vontades não se fiem só na esperança ou no medo
De sempre levar ou perder a chance de desfrutar de alguma vantagem
Pesquisando, trabalhando, vivendo não só para nos adaptarmos
Mas sim para transformarmos, interferirmos de modo sustentável
Integrando esta melodia que todos cantam e dançam
Mas que só alguns têm coragem de assumirem
Que dela também fazem parte.

17 de setembro de 2014

Hipátia

"Ensinar superstições como verdades é uma das coisas mais terríveis.”

Todas as formas religiosas dogmáticas são falaciosas e não devem ser aceitas por auto-respeito pessoal.”

Governar acorrentando a mente através do medo de punição em outro mundo é tão baixo quanto usar a força.”

15 de agosto de 2014

Como você reagiria se não houvesse julgamento?

Faria as mesmas escolhas?
Ou acredita que seu destino lhe impeliria a ter os mesmos comportamentos?
Seria sempre o mesmo, determinado por uma essência, até se descobrisse que nasce, cresce e morre aprendendo e desaprendendo?
Se pudesse mudaria algum detalhe?
Ou está inteiramente satisfeito com seus erros e acertos?
Preocuparia-se mais com o bem dos outros e menos com as atitudes que eles não aceitam?
Continuaria se queixando das dificuldades, ou mergulharia nas contradições para ao menos debatê-las?
Se acaso a dúvida aparecer, o que você pretende fazer?
Procurará compreendê-la?
Ou tentará removê-la imediatamente?
Será ao menos um pouco sincero?
Ou terá de recorrer à força e à justiça de algum dragão ou serpente?
Em algum céu ou inferno onde os castigos e as recompensas que, repetindo os padrões de educação adotados aqui na terra, finalmente encontrariam algum fundamento?
Por mais que isto improvável lhe pareça
Considere as probabilidades
De sua genética lhe sugerir outros argumentos
Para que haja adaptação e sobrevivência
Faz-se necessária a congruência de muitos processos
Que também do acaso dependem
Você abandonaria algumas crenças se elas porventura desprezassem o espaço-tempo?
O que há de original em você além da possibilidade de explorar a humanidade que também aos outros persegue?

13 de agosto de 2014

Fanfarra da culpa

Não encontrava desculpa
Para retornar às ruas
Marchava às escuras
Espalhando sua fúria

Estava tão segura
Que toda a atenção era só sua

Repassava a angústia
Repetindo a lamúria
Em cada compasso
Engessando a partitura

Cobrava
Intrometia-se

Conselheira punitiva
Esquecia-se que o seu sucesso também dependia
Da derrota de toda a sua estrutura.

Conjunto do medo

Ensaiava em segredo
Achava que ainda era cedo
Para encerrar seu concerto

Encontrava-se assim insatisfeito
Com a ausência de entrosamento

Permaneceria por mais tempo
Compondo novas canções
Mixando-as com velhos intentos

Só então subiria ao palco
Tornando público o seu contratempo

Demonstrando
Afinal
A que veio.

O assalto

        Tudo estava calmo, tranquilo, estável. As sensações eram boas e assim eu me convencia de que as impressões que construía correspondiam exatamente àquilo que acontecia de fato. Por dentro. Por fora. Em qualquer parte do que chamava de realidade. Tudo no meu corpo, seus órgãos, com seus músculos e fibras, artérias e veias, glândulas e secreções, cumprindo suas funções dentro de minhas estruturas celulares, parecia-me em seu mais completo estado. Era como se eu tivesse uma porção de vidas sendo vividas dentro de mim e que, para mantê-las assim, só bastava alimentá-las, e elas, por si só, como uma espécie de milagre, se encarregariam de fazerem todo o mecânico trabalho. Sentia-me como o comandante, o responsável, aquele que dava as ordens, cabendo a mim somente o desfrute de toda a empreitada. Jamais seria como aqueles simples e discretos funcionários que para prosseguirem com suas vidas precisavam sujar suas mãos e até se juntarem à massa. E era justamente com esta imagem incrustada em minha mente que eu, transbordante de alegria, caminhava. Observava e abordava as pessoas, reparava em algumas árvores, voava junto das inúmeras espécies de pássaros que minha fantasia insistia que continuavam coabitando na mais perfeita paz em todas as partes de nossa invejável cidade. Mas, eis que de repente, fui assaltado por uma gangue de pensamentos totalmente contrários às minhas vontades. Era como se o chão desaparecesse e eu, como num sonho, tentava em vão resistir à queda batendo minhas asas imaginárias. Todo o meu organismo agia para lidar com estas reações, não me restando forças senão para entregar-me. Perdido, prostrado, fiquei sem o menor resquício da antiga autoestima que me acompanhava. Só depois, muito tempo depois, é que pude compreender o que realmente havia me afetado. Uma simples lembrança acabara despertada e eis que o meu suposto controle chegava ao fundo dos mares. Acabei reduzido a uma espécie de jangada que não resistira aos vários saques de um navio pirata. Desnorteado, minha fala abalada pelo terror que de mim se apossava, com a respiração e a circulação profundamente alteradas, sentia meu coração batendo descompassado, recebendo e enviando mensagens desconexas – através de meus desgastados sistemas – ao meu cérebro que, naquela eternidade, não me servia para mais nada. Carregado de energias que proviam dos mais incompreendidos lugares, sem que pudesse canalizá-las para que conseguisse enfim me recompor e continuar minha viagem, fui mais uma vez (na verdade, esses movimentos se manifestaram quase que todos ao mesmo tempo, minha percepção é que se demorou tanto para registrá-los) surpreendido por outro ataque. Agora, eram os meus nervos que se revoltavam. Extremamente desnorteados, sem o habitual equilíbrio entre a tensão e o relaxamento, não me permitiram levantar-me. Cai exausto, sentindo as vertigens, a condição extremada que estas sensações encontraram para se expressarem e, se não fosse encontrado a tempo, confesso que teria desistido, e ali, naquela ilha remota para aonde havia sido transportado pelas ondas que não se acalmavam, minha matéria teria se reintegrado. O fato é que após os delírios, a febre intensa e a desidratação que não terminava, fui recobrando aos poucos alguns de meus sentidos e, com muito pesar, acabei reconhecendo minha ignorância sobre aquele súbito ataque. Um simples estímulo, uma dor que julgava já ter me livrado, após ter passado a odiá-la com todas as forças que acreditava serem necessárias, gerara uma corrente que às outras facilmente se conectava e que eu, no auge da minha prepotência de animal civilizado sequer ponderava, fizeram com que eu compreendesse que meu modo de estar, me enxergar e me expressar, carregava uma boa carga hereditária que, assim como em alguns de meus antepassados terrestres ou mesmo aquáticos, tanto me ajuda como me alça às mais variadas emboscadas na incansável busca por alguma continuidade. Graças a estas pessoas de corpos pintados e que felizmente já haviam abandonado o canibalismo que eu mesmo praticava em meus sonhos de criatura alucinada pela sentença de que nada importava mais do que conseguir ser feliz e obter prazeres infindáveis, que me ensinaram ser a justa medida para acabar condecorado, continuo vivo e bem menos certo, porém cada vez mais ligado ao que dentro de mim também se passa e frequentemente exala. Minhas emoções, minhas palavras, meu jeito singular e ao mesmo tempo comum de representar e exteriorizar o que há tanto tempo nos intriga saber de onde vêm, para onde vão, quais são, enfim, suas finalidades. Uma lição eu aprendi: muito do queremos esconder voluntariamente, pode e se revela de uma forma ainda mais intensa, pela força do hábito, das associações e imitações que, muitas vezes involuntariamente, fazem nossas expressões se desencadear até quando estímulos similares surgem e são percebidos por todo o conjunto que sabe que é o nosso viver que precisa de outras coordenadas para nos localizarmos. E se hoje faço este relato, é com o rosto corado por uma timidez que me acompanha e que percebi que contra ela nada posso, pois, quanto mais tento, esforçando-me para barrá-la, mais meu sangue invade e irradia por toda a minha face. Todos estes sintomas são as expressões de estados de espírito velhos ou novos que nos acompanham, fazendo-nos ver que não passamos de organismos vivos dentro da vida que, geração após geração, nos perpassa.