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28 de novembro de 2011

Operação

        Fez o transplante, mas houve rejeição. O órgão colocado não conseguia reagir diante daquela situação. Fez o transplante e aconteceu uma complicação. O homem necessitado não sabia se aquele que havia sentido outras emoções poderia aceitar a nova condição. Fez o transplante e logo surgiu a indagação: como se estabeleceria a comunicação? Seriam eles capazes de ceder para que surgisse alguma conexão? Fez o que podia para recebê-lo bem, mas também ele não conseguia se esquecer de sua antiga pulsação. O coração implantado não correspondia. Quase não ouvia. Tinha ele suas próprias marcas. Suas memórias impressas em sua constituição. Os profissionais, vendo o sucedido, fizeram uma rápida reunião. O corpo atendido foi mandado mais uma vez à sala de operação. Peito aberto às pressas, balão de oxigênio, quase não havia respiração. Anestesiado, o homem sem coração foi obrigado a continuar vivendo esperando pela próxima vaga na escassa lista das doações.

Impressões

Nossas verdades nascem de nossas intuições e deduções, crescem apoiadas em nossas impressões e às vezes morrem quando as apresentamos com o orgulho de nossas razões.

Do fundo do poço posso ver o meu esboço daquilo que passou. Finalmente posso ver o que pensava ser um monstro. Só aqui vim saber que o que percebia era o seu oposto.

De dentro da alma as amarras amassam toda a calma da hora que por fora só passa.

Defendendo-se atacava a si mesmo sem suspeitar da existência de outra forma de expressão.

Com minha porção de autodestruição, faço o que posso para a minha satisfação.

23 de novembro de 2011

Epidemia

         Qual vantagem será tirada de todas essas escolhas ao longo da vida? Qual sonho você comprou hoje com os frutos da herança corrupta de sua família? Qual profissão você vai escolher, quantos diplomas você vai ter coragem de ostentar para se proteger de suas lembranças tão vazias? Qual companhia vai te escutar se você só se envolve, acredita em suas mentiras? Qual palavra você gostaria de falar na hora de participar de sua mais nova jogatina? Qual promessa você quer fazer, se o que você gosta é de se esquecer para não enlouquecer, se convencendo da honestidade de sua intenção assassina? Qual linguagem você vai usar para fingir que não sabe que é mais um produto desta multidão de ratazanas envaidecidas? Qual esporte você quer praticar para fortificar a sua insensatez e toda a miséria e desigualdade educacional que faz os outros sofrer desde que se achou no direito de lutar e compensar seu egocentrismo? À qual fé você vai recorrer para confortar sua agonia? Tenho a impressão de que se alguém espalhasse algumas ratoeiras pelas ruas das cidades e colocasse uma recompensa como atrativo seriam poucos os que as evitariam. Pode ser dinheiro, qualquer coisa que lhes dê status ou alguma possibilidade de ascender nas hierarquias dessa porcaria chamada livre concorrência, livre iniciativa propagada pelas pedagogias das diferenças que só os distanciam da raiz do problema dessa estrutura classista. Basta uma simples referência, alguma forma paternal ou matriarcal para vê-los correndo, fazendo intrigas, apanhando e batendo mesmo entre os que se acreditavam amigos. Sombras querendo sair do anonimato para esconder suas tristezas, arrumando um jeito de sorrir como verdadeiros zumbis. Sombras por todos os lados, em todos os tempos, garantindo a continuidade dos valores e dos comportamentos que reagem substituindo. Sombras que respiram a apatia, trancando-se em seus esconderijos, julgando-se imunes aos sintomas de suas conquistas. Trancados, multiplicando os focos desta peste criada nos laboratórios desta superpopulação cada vez mais autodestrutiva. Pagando para experimentar essas sensações e se dizerem cheios de otimismo. Com os olhos secos e o espírito sempre pronto a adaptar-se a toda e qualquer epidemia.

20 de novembro de 2011

No moinho das almas

Queimo minha pele
Encontro areia em meu bolso
Velejo em seu esboço
Sinto porque fui tão calmo
Converso com meu sobrinho
Flutuo sobre um mar revolto
Fazendo planos
Não durmo
Não sonho
Anseio
Inspiro minhas angústias
Pois também sou teimoso
Então, sustento minhas defesas
Mantenho minha prece calada
Aos poucos vou sabendo de suas marcas
Farejo as beiradas da calçada
Não
Não consigo apertar o passo
Pergunto a mim mesmo
Onde deixei meu corpo
Exposto
Exausto
Ao seu lado
Tudo ficava mais saboroso
Esqueço
Desgosto
Lembro
Fico
A cada segundo de vida
Um ano mais morto
É estranho
Também me parece estranho
Você conhece algum jeito
De ignorar um coração afoito?