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17 de fevereiro de 2011

Além das vantagens, nossas recordações

Às vezes nos reuníamos com a finalidade de reviver certos acontecimentos que impulsionaram os rumos de nossas vidas. Quase toda semana aparecia em nossa casa algum parente distante, amigos e amigas que igualmente se recusaram à obediência cega e até mesmo pessoas que se diziam restauradoras da história de lutas contra o intenso paternalismo de nosso país.
Como apreciador do sempre bom e gratificante bate-papo, jamais me opus a iniciar qualquer discussão proposta. Tanto que, muitas vezes, chegávamos a interromper o assunto inicial a fim de que, no próximo encontro, pudéssemos recomeçar com novos e sugestivos argumentos. Tudo isso porque o nosso desgaste se mostrava mais forte do que nossas reais intenções.
Sempre acabávamos por zombar da vida alheia. De como as pessoas que nos cercaram mais intensamente agiam de forma contrária às nossas, também diferentes, filosofias de vida. Assumíamos máscaras poderosíssimas, e isso se mostrava com maior freqüência à medida que voltávamos nossas lembranças para os membros de nossas respectivas famílias. Algo muito comprometedor, uma vez que lidávamos e nos envolvíamos com aspecto pra lá de polêmico. A honra individual.
Havia uma porção de crianças sorrindo à nossa volta. Sobrinhos, netos, filhos e filhas de amigos considerados, além da garotada que morava nas ruas e casas vizinhas. Alguns corriam desesperadamente atrás de uma velha bola feita de meias por minha garota, enquanto outros não se contentavam em nos observar e ouvir nossas conversas. Contavam algumas estórias também, as quais, pelo que os anos me ensinaram, memorizavam menos pela obrigação do que pelo prazer de se infiltrar na particularidade de cada ser humano.
Lembro que determinada vez cessamos nossa já cansativa conversa de adultos para centrarmos o que restou de nossas capacidades de apreensão numa fábula contada com muita perspicácia por um de meus netos. Este, a princípio, parecia não se importar nenhum pouco com o fato de assumir o centro do picadeiro. Pelo contrário, mantinha-se firme em sua narrativa, encarando fixa e demoradamente cada uma das faces que o acompanharam durante aquele bem-aventurado descanso de sua mente. Chegava mesmo, nos momentos que julgara propícios, a solicitar a participação de todos os presentes.
João Pedro, essa pequena, porém gigante criatura, inspirava-me sensações tais que por uma eternidade me fez voltar ao passado, reviver certos sentimentos. Reabrir portas que jamais conseguiria sozinho, mesmo que esse fosse o meu maior intento...
Perguntou-me certa vez como conseguia viver durante tanto tempo encarando e não demonstrando o menor aborrecimento diante da velha e estafante rotina, dando ênfase suficiente nessa última palavra como se quisesse me mostrar algo que me passava despercebido. Ainda hoje posso vê-lo saindo logo em seguida para atender ao pedido de companhia solicitado por minha garota que conversava com as plantas do jardim.
Confesso: pensei em uma resposta brusca na vã tentativa de me esquivar das recordações e não cair em explicações que me levassem a questionar ainda mais minhas escolhas. Precisava me mostrar como o anfitrião da casa. Mas já era tarde demais.
A sós com meus pensamentos, atento a um ritmo que meus ouvidos e minha alma sequer haviam sido apresentados, cheguei mesmo a me esquecer completamente das visitas que me aguardavam ansiosamente na varanda de nossa casa.
Fantasiava minha vida vindo de encontro com a destes seres que direta ou indiretamente completam minha existência. Minha companheira, meus dois filhos e todas essas crianças maravilhosas, dentre elas, João Pedro e Roberta, que me levam a sonhar com o simples vibrar de suas cordas vocais.
Percebendo a nostalgia que estes pensamentos poderiam suscitar, caso expostos, acabei por deixar-me observar a alegria de Roberta, minha neta caçula, ajudando minha garota, ou, se preferirem, sua avó, defronte ao fogão cujo formo se encarregava de assar uma bela torta de morangos.
Subitamente lá estava eu sendo trazido à tona novamente. Meus amigos despejavam palavras confusas, sem o menor intervalo, referindo-se freqüentemente à época do exílio...
Não pude agüentar quando minha garota, à medida que nos servia os pratos com a tão cobiçada torta, se referiu a mim como sendo uma pessoa extrema, em todos os sentidos. Lembro bem desse pormenor. Sai desesperado e só recobrei os sentidos quando todos já se tinham ido, deixando recomendações para que ela não tocasse mais naquele assunto.
Aquela tarde havia sido cansativa demais para mim. Aquele céu manteve-se cinza por muito tempo, sobretudo em razão das queimadas provindas dos canaviais locais. Ainda à noite continuava perplexo quando de súbito um garoto da vizinhança – lembro bem de sua fisionomia calma – me entregou uma velha folha de papel com exatos dois versos que eu havia escrito após voltar para minha cela num dia em que sofri alguns choques em meus pés, choques esses que irradiaram para os meus sensores já saturados de perguntas cretinas.
O fato é que esses versos ainda exprimiam de forma clara a resposta que eu não tive como dar ao meu neto quando ele se referiu à minha rotina. Diziam:


# Nervos programados a suportar
Humanos reclusos obrigados a esquecer
Sentimentos deixados
Enquanto nos ocupamos com o vencer

            Julgamos apoiados em valores relativos
Tal qual o são nossas ações
Às vezes nossos princípios são apenas contemplativos
E nós, humanos, ainda nos vemos com chefões!#

Vocês não imaginam o impacto que esse ponto de exclamação teve sobre a minha digestão. Fui me deitar bem tarde nesse dia, muito tarde para o meu costume, e, quando me levantei, era como se não houvesse dormido.

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