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17 de fevereiro de 2011

Os não-homens

Não por acaso, ouviam uma série de cantos emitidos por um bando de pássaros que passava sobre o local onde se dá essa nossa estória, os quais estavam à procura de um campo aberto ou mesmo fechado onde pudessem vir a encontrar algumas sementes, insetos ou mesmo larvas que saciassem suas mais que reais necessidades vitais.
Assim, tão logo o carcereiro – um sujeito de olhar inquieto, barba espessa, rosto pálido e munido de personalidade especialmente treinada para receber e acatar as ordens de seus superiores – soou o apito, num gesto que repetia quase o dia todo na esperança de marcar a sua superioridade, nossos personagens já se encontravam de pé, prontos a serem revistados e extremamente ansiosos por mais algumas horas longe daquele espaço onde se comprimiam dias e noites a fio.
Transformados em números, cuja simples menção causava um misto de espanto e perplexidade entre os outros detentos daquela e de outras penitenciárias, nossos personagens encontravam-se, no momento em que o carcereiro os revistava e os insultava ao mesmo tempo, completamente absortos em seus pensamentos: relembrando o que se passara em seus últimos sonhos ou procurando uma única explicação frente às suas oportunidades e quase absoluta ausência de escolhas, ainda que o fizessem subjetivamente.
A caminho do pátio, local onde poderiam jogar futebol, sentir a intensidade dos raios solares, fumarem seus cigarros observando a fumaça simplesmente se dispersar junto ao ar, bem como outras coisas permitidas pela Lei, optaram por conversar sobre assuntos distintos, porém o faziam de forma cautelosa, se esforçando ao máximo para que cada história relatada pudesse ser analisada, comparada e sintetizada sem o peso das cobranças.
Pensavam muito em seu Pedro – um homem de gestos suaves, sobrancelhas fortes, que estava sempre com um chapéu sobre a cabeça e que era considerado por sua incrível paciência e compreensão – o qual acabara falecendo em razão das inúmeras infecções que contraíra ao longo dos anos em que esteve naquela velha e conhecida cela número onze.
Jamais alguém soube ou suspeitou o motivo pelo qual o mantiveram durante tanto tempo naquele lugar, visto que o mesmo, nem um único dia, demonstrou qualquer tipo de resistência, fato este que acabou sendo usado pelo advogado de acusação em seu julgamento e considerado pelo juiz como mais uma prova de suas atitudes suspeitas.
Durante os banhos de Sol, seu Pedro quase sempre falara sobre o peso que ele sentia por ser visto por muitos, inclusive seus familiares, como um indigente, um louco, um velho imprestável que durante toda a sua vida só se meteu em agitações, se ocupou de seus sonhos e fez questão de se mostrar contrário ao modo pelo qual as pessoas dão sentido às suas vidas há anos.
Dois policiais – contava o velho – invadiram sua casa, ameaçaram sua família, algemaram-no, estraçalharam suas telas e fizeram de seus antigos quadros apenas fragmentos de lembranças que nem mesmo com a sua morte foi capaz de apagar.
Juca, que a princípio ficara cerca de dois anos em uma casa de recuperação para menores de rua (onde as assistentes sociais se mostravam extremamente envolvidas com a quantia recebida da prefeitura local), tentara travar uma conversa com seu Pedro acerca daquilo que intrigava a todos por ali, ou seja, por que motivos afinal mantinham o velho preso; porém, a única coisa que ouvira sair da boca de seu Pedro foi a insistente e não compreendida frase de que:
– “A arte feita realmente com compromisso e na tentativa de expressar o que cada ser vê barrando as possibilidades de emancipação humana, sempre será contrária à divisão da sociedade em grupos que acumulam, em contrapartida com aqueles que são submetidos a viverem se amontoando como sardinhas no interior dos coletivos, agências de emprego, enfrentando filas imensas em postos de saúde para depois saírem de lá com a nítida impressão de que foram enganados mais uma vez e que de nada adiantou toda a encenação posta em prática pelos funcionários da burocracia”.
Nesse contexto, sequer atribuíram sentido ao soar do apito que os convocavam a retornar às suas respectivas celas. Foram se dirigindo vagarosa e silenciosamente para aquele antro, e, tão logo pisaram o chão úmido e ouviram o barulho do molho de chaves preso às calças do carcereiro, perceberam-se realmente como condenados, temendo, sobretudo, acabar morrendo como seu Pedro.
Cabisbaixos, nossos personagens passaram aquela tarde toda fazendo pipas, artesanatos de todos os tipos e tamanhos – inclusive muitos daqueles barcos à vela montados com muita paciência dentro de garrafas de vidro – que acabam enfeitando as propriedades de muitos cidadãos respeitados.

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