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18 de fevereiro de 2011

Gregário

Dentro e fora dele

Comecemos com um personagem. Um pequeno recorte que fazemos de nós mesmos e que logo nos esquecemos. Parcialmente porque o julgamos inexpressivo em sua simplicidade. Associemos à sua forma sensações e pensamentos. Linguagens inexploradas e hábitos enraizados. Um conteúdo indissolúvel embaralhando-lhe as entranhas. Compondo-lhe os traços dos movimentos. Ele todo envolvido, existindo, escolhendo. Vivendo e morrendo. Comecemos assim com uma música. Convulsiva. Singrando o ar até chegar às nossas peles, às nossas veias, aos nossos sangues e ossos, aos nossos sistemas e órgãos, que, por sua vez, vão apreendendo instintiva e culturalmente ao sabor de seus gostos. Flutuando no tempo, relativizando os espaços, desbancando a necessidade de compreender o que é e o que é representado. Dancemos com ele pelos becos do acaso e pelas esquinas da lógica, da nossa própria lógica, sem nos dar conta dos degraus. Até nos esborracharmos. Sim, nós também! Mas não nos esqueçamos de deixá-lo em seu verdadeiro habitat. Animal indecifrável. Ator comprometido e responsável. Humano encorajado em seu mais novo papel de turista da trama vital. Vislumbremo-lo, assim, como uma dessas criaturas que quase sempre se afligem vendo morrer algumas de suas pluralidades para que outras também possam nascer. Viver. E morrer.

– Fechem as cortinas – gagueja o nosso homem.
– Afinal, é tão ruim ficar aqui sentado, assistindo calado, as almofadas assumirem as minhas formas. Enquanto o universo invisível vai se comprimindo e eu vou submergindo sempre em mais e mais abstrações. Enquanto meus amigos estão dormindo e suas marcas também vão ficando pelo chão.
– Hoje eu vou improvisar. E vocês – uma vez que também estão aí – estão convidados a participar.

Quem é esse eu?

Exploremos com ele as suas particularidades. Naveguemos sem mapas, com todas e com nenhuma de suas e de nossas próprias coordenadas. Versemos pela arte da satisfação individual salpicada com uma boa pitada de herança cultural. Imaginemos, assim, uma espécie de relação equilibrada. Pouco aprofundada, mas bastante afetada. Rituais precoces nas arquibancadas das maternidades. Eis o nosso homem. Gestado. Parido. Amamentado. Socializado. Eis o seu meio. Apressado. Paranóico. Econômico em tudo quanto fuja de suas necessidades.

– Tenho medo de continuar cometendo suicídios e homicídios dentro e fora de mim. Morrendo e matando tudo aquilo que existe independente e ao mesmo tempo conectado entre si. Talvez esse medo não passe de mais um.
– Nessa corrida, entretenho o meu espírito, torturando ora os meus pensamentos, ora os meus sentimentos, como se eles estivessem sempre aqui para satisfazer os meus desejos, projetos e planos. Agradando a maioria e me segregando cada vez mais, dia-após-dia.
– Será que esse passatempo haverá sempre de me acalentar e me preparar para o fim heróico do suportar?

Meio sem ambiente

Não nos convém insistir. Hoje ele não vai sair. A sua fábrica de delírios está operando a todo vapor. As engrenagens continuam reprisando e produzindo novos enredos para a trama de sua confusão. Toda a engenhosidade está aplicada na arquitetura dos instrumentos e na diversificação das tecnologias para mais uma amputação. Um exército organizado, automedicado, fugindo sempre à luta intrínseca da valorização. Voltemos amanhã. Talvez o encontremos um pouco menos enraizado no campo de suas limitações.

– Por que precisamos nos enganar? Nos atolar em superstições e atiçá-las desproporcionalmente para que assim, justificados, possamos continuar?
– Às vezes respiro e imagino. Sinto. Dormindo, muitas vezes, me indigno com a minha forma, deixando alguns indícios – sangue, carne, lágrimas – de que deságuo numa nascente de colapso e tudo, ou melhor, praticamente tudo, se represa. Forças, vontades e interesses. Simplesmente porque se cansaram de socorrer minhas reações.
– De que me valem as suas estratégias, quero dizer, os seus aplausos e as suas críticas, se abdiquei das recompensas psicológicas em prol de um emaranhado de responsabilidades que talvez não passe de novos abrigos para ninar as minhas convicções?

Senso de proporção

            Não há muitas escolhas quando temos que fazer reverência, bater continência e legitimar a sua ou quem sabe a nossa própria reflexão. O melhor, nesse caso, seria o deixarmos suspenso. Truncado, Mutilado em suas ou quem sabe nossas sempre tão aclamadas realizações. Satisfazendo-se em rodeios que se cristalizam e assumem a textura e o paladar de um suflê de pensar, sentir e agir que se comove, mas que não consegue sair de sua habitual intervenção.      

            – O que vocês estão esperando para me tirar daqui? Não perceberam a minha deixa?!
            – Talvez devam estar se analisando, computando, espiando como ratos, fuçando entre os trapos de suas tão desgastadas expressões. Ou, talvez, se sintam cansados, como bambus envergados, que só aceitam a minha e, por contraste, também as suas explicações.
            – Abram esse calabouço, desentupam esse fosso tosco. Vamos fazer algo contra essa apologia grudenta praticada em universos ilhados que se quer conscientizada e que, justamente por se fiar a isso, não passa de mais uma piada. Sem graça e que só nos desgraça quando o que precisamos é de um pouco mais de intensidade para nos tornarmos reais.

Despedida
                       
            Talvez nos pareça fácil se desvencilhar. Visualizar, ouvir e voltar a jogar. Afinal, temos sempre tantas coisas pendentes, não é mesmo? Tantos rituais com nossas vaidades para aceitar ou refutar. Uma porção de sentimentos esperando a hora para extravasar. Ainda mais quando nos surpreendemos fazendo parte de algo tão embaraçoso. Imagine! A atitude mais sensata seria mesmo recuar. Liguemos nossos aparelhos, finquemos nossos fones de ouvido, telefonemos para alguns de nossos melhores amigos. Pensemos em nós mesmos. Logo estaremos livres e felizes como nos velhos bons tempos.   

            – Abram as cortinas.
            – Depois de todos esses atos eu me sinto exausto. Só me resta assumir o meu lugar. Tomar um bom banho e voltar a contracenar.
            – Quem sabe nos encontremos por aí. A qualquer hora, dentro e fora, de nosso próprio bem ou mal-estar.

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