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2 de junho de 2013

Carolina Maria de Jesus

Eu não encontro defeito nas crianças (...). Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradaveis.”

Estive revendo os aborrecimentos que tive esses dias (...). Suporto as contingências da vida resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.”

Quando estou nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.”

Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção. Quero enviar um sorriso amavel as crianças e aos operarios.”

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora (...). Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças.”

É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos (...). Nas prisões os negros eram bodes expiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz.”

Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo (...). E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome.”

Eu classifico São Paulo assim: o Palacio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.”

Pensei no Casemiro de Abreu, que disse: ‘Ri criança. A vida é bela.’ Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a epoca está apropriada para dizer: ‘Chora criança. A vida é amarga’.”

Aqui na favela todos lutam com dificuldade para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros.”

Os politicos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.”

Quem deveria dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou do lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o país dos politicos açambarcadores.”

É quatro horas. Eu já fiz almoço – hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguem.”

O senhor Manoel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal.”

Eu penso que a violência não resolve nada (...). Assembleia de favelados é com paus, facas, pedradas e violências.”

Os visinhos de alvenaria olha os favelados com repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo de pobresa. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres.”

Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operarios, para os mendigos, que são escravos da miseria.”

Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: – É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.”

Se a gente pudesse escrever sempre elogiando! Se eu escrever que o Valdemar é bom elemento quando alguem lhe conhecer não vai comprovar o que eu escrevi.”

O que eu acho interessante é quando alguem entra num bar ou emporio logo aparece um que oferece pinga. Porque não oferece um quilo de arroz, feijão, doce, etc.?”

Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no alcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguem. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no alcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: – Muito bem, Carolina!”

Quando morre alguem aqui na favela os malandros saem pelas ruas pedindo esmolas para sepultar os que falece. Embolsam o dinheiro e gastam na bebiba.”

Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.”

As quatro horas comecei escrever. Quando eu desperto custo adormecer. Fico pensando na vida atribulada e pensando nas palavras do Frei Luiz que nos diz para sermos humildes. Penso: se o Frei Luiz fosse casado e tivesse filhos e ganhasse salario minimo, ai eu queria ver se o Frei Luiz era humilde. Diz que Deus dá valor só aos que sofrem com resignação. Se o Frei visse os seus filhos comendo generos deteriorados, comidos pelos corvos e ratos, havia de revoltar-se, porque a revolta surge das agruras.”

Penso: porque será que os meninos que fogem do Juizado vem difamando a organização? Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juizes não tem capacidade para formar o carater das crianças. O que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?”

O que observo é que os que vivem aqui na favela não podem esperar boa coisa deste ambiente. São os adultos que contribue para delinquir os menores.”

Cheguei em casa e deitei. Estava com frio e mal estar. O povo da favela já sabe que eu estou doente. Mas não aparece ninguem para prestar-me um favor. Não deixo o João sair. Ele passa o dia lendo. Ele conversa comigo e eu vou revelando as coisas inconvinientes que existe no mundo. Já que o meu filho já sabe como é o mundo, a linguagem infantil entre nós acabou-se.”

Quando eu ia na residencia do Dr. Adhemar encontrei um senhor que deu-me este cartão: Edison Marreira Branco. Estava tão bem vestido que atraiu os olhares. Disse-me que pretendia incluir-se na politica. Perguntei-lhe: –Quais são suas pretensões na politica? – Quero ficar rico igual ao Adhemar. Fiquei horrorizada. Ninguém mais apresenta amor patriotico.”

Um sapateiro perguntou-me se o meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhavel escrever a realidade.”

Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns operarios que saiam da fabrica disse-me: – Carolina, já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.”

Uma senhora chamou-me para dar-me papeis. Disse-lhe que devido ao aumento da condução a policia estava nas ruas. Ela ficou triste. Percebi que a noticia do aumento entristece todos. Ela disse-me: – Eles gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa. O Auro perdeu, aumentou a carne. O Adhemar perdeu, aumentou as passagens. Um pouquinho de cada um, eles vão recuperando o que gastam. Quem paga as despesas das eleições é o povo!”

O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia dar uma surra nestes politicos alinhavados que não sabem administrar o pais.”

Fui fazer compras no japonês. Comprei um quilo e meio de feijão, 2 de arroz e meio de açucar, 1 sabão. Mandei somar. 100 cruzeiros. O açucar aumentou. A palavra da moda, agora, é aumentou. Aumentou!”

Isto me faz lembrar esta quadrinha que o Roque fez e deu-me para eu incluir no meu repertorio poetico e dizer que é minha: Politico quando candidato. Promete que dá aumento. E o povo vê que de fato. Aumenta o seu sofrimento!”

Hoje eu estou triste. Deus devia dar uma alma alegre para o poeta.”

O que eu fico admirada é das almas da favela. Bebem porque estão alegres. E bebem porque estão tristes (...). A bebida aqui é o paliativo. Nas epocas funestas e nas alegrias.”

Fui carregar agua. Não tinha ninguem. Só eu e a filha do T., a mulher que fica gravida e ninguem sabe quem é o pai de seus filhos. Ela diz que os seus filhos são filhos de seu pai.”

Penso: porque há se ser o pobre quem há de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operario? Na minha fraca opinião quem deve ter filhos são os ricos, que podem dar alvenaria para os filhos. E eles podem comer o que desejam.”

Quando o carro capela vem na favela surge varios debates sobre religião. As mulheres dizia que o padre disse-lhes que podem ter filhos e quando precisar de pão podem ir buscar na igreja. Para o senhor vigario, os filhos de pobres criam só com pão. Não vestem e nem calçam.”

De manhã teve missa (...). O padre disse que sente prazer de estar entre nós. Mas se o padre residisse entre nós, havia de expressar de outra forma.”

Fui no Correio retirar os cadernos que retornaram dos Estados Unidos (...). Cheguei na favela triste com se tivessem mutilado os meus membros. O The Reader Digest devolvia os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra.”

O meu pensamento começou a desvendar a sordidez do cigano. Ele tira proveito da sua beleza. Sabe que as mulheres se ilude com rostos bonitos. Ele atrai as mocinhas dizendo que casa com elas. Satisfaz seus desejos e depois manda elas ir embora(...). Olhei o rosto do cigano. O rosto bonito. Mas fiquei com nojo. Era um rosto de anjo com alma de diabo.”

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”

O senhor Manoel chegou. Agora eu estou lhe tratando bem, porque percebi que gosto dele. Passei varios dias sem vê-lo e senti saudades. A saudade é amostra do afeto.”

Hoje tem muito papel no lixo. Tem tantos catadores de papeis nas ruas. Tem os que catam e deitam-se embriagados. Conversei com um catador de papel. – Porque é que não guarda o dinheiro que ganha? Ele olhou-me com seu olhar de tristeza: – A senhora me faz rir! Já foi o tempo que a gente podia guardar dinheiro. Eu sou um infeliz. Com a vida que levo não posso ter aspiração. Não posso ter um lar, porque um lar inicia com dois, depois vai multiplicando. Ele olhou-me e disse-me: – Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. Sabe onde estou dormindo? Debaixo das pontes. Eu estou doido. Eu quero morrer! – Quantos anos tem? – 24. Mas já enjoei da vida. Segui pensando: quem escreve gosta de coisas bonitas. Eu só encontro tristezas e lamentos.”

Quando o José Carlos entrou, disse: – Eu tenho uma coisa para contar. – O que é? – Eu vi o Chico fazendo bobagem com a P. Não dei margem ao assunto. Ele prosseguia: – O Chico fazia bobagem com a P. e a Vanilda estava perto olhando. A Vanilda tem 2 anos!”

Encontrei um cego: – Há quantos anos perdeste a vista? – 10 anos. – Achou ruim? – Não. Porque tudo o que Deus faz é bom. – Qual foi a causa da perda visual? – Fraqueza. – E não teve possibilidade de cura? – Só se fizer transplantação. Mas é preciso encontrar quem me dê os olhos. – Então o senhor já viu o sol, as flores e o céu cheio de estrelas? – Já vi. Graças a Deus.”

A pior praga da favela atualmente são os ladrões. Roubam de noite e dormem durante o dia. Se eu fosse homem não deixava os meus filhos residir nesta espelunca. Se Deus auxiliar-me hei de sair daqui, e não hei de olhar para trás.”

O senhor Manoel apareceu (...). Deu-me 200 cruzeiros, eu não quis aceitar. – Você não me quer mais? – Eu tenho muito serviço. Não posso preocupar com homens. Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus filhos. Eu, nunca tive sorte com homens. Por isso não amei ninguém. Os homens que passaram na minha vida só arranjaram complicações. Filhos para eu cria-los.”

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