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13 de março de 2025

Byung-Chu Han

“Dores são cifras. Elas contêm a chave para o entendimento de toda a sociedade.”

“Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor[…] A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada.”

Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e passa, da psicologia negativa como ‘psicologia do sofrimento’, para a ‘psicologia positiva’, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo.”

A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica do desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até mesmo de crescimento pós-traumático.”

A missão de felicidade da psicologia positiva e a promessa de um oásis de bem-estar medicamente produzível são irmanadas.”

Não por acaso o especialista em dor estadunidense David B. Morris já notava, décadas atrás: ‘Os americanos de hoje pertencem, provavelmente, à primeira geração da Terra que veem uma existência livre da dor como um direito constitucional. Dores são um escândalo’.”

A sociedade paliativa é, ademais, uma sociedade do curtir. Ela degenera em uma mania de curtição. Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor. Não apenas a arte, mas também a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar dor. Esquece-se que a dor purifica. Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse.”

Artistas se encontram, eles mesmos, sob a coação de se estabelecerem como marcas. Eles se tornam conformes ao mercado e curtíveis[…] A criatividade como estratégia econômica permite, porém, apenas variações do igual. Ela não tem nenhum acesso ao inteiramente outro. Falta a ela a negatividade da ruptura, que dói.”

Seja feliz é a nova fórmula da dominação[…] Como capital positivo, a felicidade deve garantir uma capacidade para o desempenho ininterrupta. Automotivação e auto-otimização fazem o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação se exerce sem nenhum grande esforço. O submetido nem sequer tem consciência de sua submissão. Ele se supõe livre.”

No regime neoliberal, também o poder toma uma forma positiva. Ele se torna smart. Em oposição ao poder disciplinar repressivo, o poder smart não provoca dor[…] A submissão se realiza com auto-otimização e autorrealização.”

Somos permanentemente requeridos a comunicar nossas carências, desejos e preferências e a narrar a nossa vida. Comunicação total e vigilância total, exposição pornográfica e vigilância panóptica coincidem.”

O dispositivo de felicidade neoliberal nos distrai do sistema de dominação[…] Ele cuida para que cada um se ocupe apensas consigo mesmo, com a sua própria psyché, em vez de interrogar criticamente as relações sociais. O sofrimento pelo qual a sociedade seria responsabilizável é privatizado e psicologizado. Devem se melhorar não as condições sociais, mas sim as da alma.

Assim, a psicologia positiva sela o fim da revolução. Não revolucionários, mas treinadores de motivação tomam o palco, e cuidam para que não surja nenhum descontentamento, nenhuma raiva.”

Dê boas-vindas a toda ‘mudança’ angustiante e a veja como uma oportunidade.”

O cansaço na sociedade do desempenho neoliberal é não político[…] Ele é um sintoma do sujeito do desempenho sobrecarregado e narcísico.”

A vida é reduzida a um processo biológico que deve ser otimizado. Ela perde toda dimensão metafísica. O self-tracking evolui em cada culto. A hipocondria digital, a permanente automedicação com apps de saúde e fitness degradam a vida a uma função. A vida é despida de toda narrativa promotora de sentido. Ela não é mais o narrável, mas o mensurável e o contável. A vida se torna nua, sim, obscena. Nada promete permanência.”

Hoje nos parece especialmente difícil morrer, pois não é mais possível encerrar a vida de modo dotado de sentido. Ela termina em um tempo inoportuno. Quem não consegue morrer no tempo certo tem de terminar em tempo inoportuno. Envelhecemos sem nos tornarmos velhos.

A sociedade dominada pela histeria da sobrevivência é uma sociedade dos mortos-vivos.”

Justamente na modernidade, no qual o meio ambiente produz cada vez menos dor em nós, nossos nervos de dor parecem se tornar cada vez mais sensíveis. A algofobia nos torna extremamente sensíveis à dor. Ela pode, até mesmo, induzir dores.”

É, justamente, a própria e persistente ausência de sentido da vida que dói.”

“[…] A violência também é o excesso de positividade que se manifesta como hiperdesempenho, hipercomunicação e hiperestimulação. A violência da positividade leva a dores de sobrecarga.

“[…] O servo tira o chicote da mão do senhor e chicoteia a si próprio para se tornar senhor, sim, para ser livre. O sujeito do desempenho está em guerra consigo mesmo."

“O comportamento autoagressivo cresce rapidamente hoje. ‘Fendas’ se desenvolvem em uma epidemia global. Retratos de cortes profundos que se fez em si mesmo circulam em redes sociais(…) Eles apontam para a sociedade dominada pelo narcisismo, na qual cada um está carregado consigo mesmo até o ponto da insuportabilidade. ‘Fendas’ são uma tentativa vã de descartar esse fardo do ego, de irromper para fora de si mesmo, para fora das tensões destrutivas internas. Esses novos retratos da dor são o outro lado sangrento das selfies.”

“Viktor von Weizsäcker descreve a cena originária da cura da seguinte forma: Quando a irmãzinha vê o irmãozinho com dor, ela encontra, antes de todo conhecimento, um caminho: acariciante, a sua mão encontra o caminho, acariciante, ela quer tocá-lo lá, onde dói – assim, a pequena samaritana se torna a primeira médica.

“Hoje, nos afastamo-nos cada vez mais dessa cena originária da cura. Torna-se cada vez mais rara a experiência do cuidado curador como sensação de ser tocado e abordado. Vivemos em uma sociedade com crescente solidão e isolamento."

“[…] Para dores, a solidão e a experiência de proximidade faltante funcionam como um amplificador. Talvez dores crônicas como aqueles cortes autoinduzidos sejam um grito do corpo por atenção e por proximidade, sim, pelo amor, uma indicação eloquente de que, hoje, dificilmente ocorrem contatos. Falta-nos, evidentemente, a curadora mão do outro. Nenhum analgésico pode substituir aquela cena originária da cura.

“[…] Apenas verdades doem. Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdade, um inferno do igual… A dor é um critério confiável da verdade, um ‘instrumento da separação do verdadeiro e do falso nas manifestações do vivente.”

[…] Sem dor, nem amamos, nem vivemos. A vida é sacrificada pela sobrevivência confortável. Apenas uma relação viva, um verdadeiro um-com-o-outro, é capaz de dor. Um um-ao-lado-do-outro sem vida e funcional não sente nenhuma dor, mesmo se ele desmorona.”

[…] O amor como consumo, que coisifica o outro em um objeto sexual, não dói. Ele é o oposto ao Eros como desejo pelo outro.

[…] Sem dor, não é possível nenhuma avaliação de valor que se apoie em distinções.”

[…] O contínuo curtir leva a um embotamento, a uma desconstrução da realidade. A digitalização é anestesiação.

A dor acentua a autopercepção. Ela delineia o si. Ela desenha seus contornos. O crescente comportamento autoagressivo pode ser compreendido como uma tentativa desesperada do eu narcísico e tornado depressivo de se assegurar de si mesmo, de se perceber. Sinto dor, logo existo… Se ela desaparece inteiramente, busca-se por substitutos. Dores produzidas artificialmente fornecem um remédio [para a ausência de dor]. Esportes extremos e comportamentos de risco são tentativas de se assegurar de sua própria existência.”

Assim, a sociedade paliativa produz, paradoxalmente, extremistas. Sem cultura da dor surge barbárie: ‘Estímulos cada vez mais fortes são necessários para se dar ao ser humano em uma sociedade anestesiada um sentimento de vivacidade. Drogas, violência e terror são os únicos estímulos que ainda podem mediar [uma] autoexperiência.”

[…] A dor, por isso, não vem ao espírito de fora… O espírito conquista a sua verdade apenas ao encontrar a si mesmo na completa dilaceração.”

[…] Em oposição ao prazer, a dor põe em movimento um processo de reflexão… Ela torna o espírito clarividente.

[…] A dor obriga aquele que cria a sentir o até então [existente], como insustentável, falho, digno de recusa, detestável.”

“A dor faz parte daquelas chaves com as quais se abre não apenas o íntimo, mas também, ao mesmo tempo, o mundo. Quando nos aproximamos dos pontos nos quais o ser humano se mostra amadurecido para a dor ou superior a ela, ganhamos, assim, acesso às fontes de seu poder e ao segredo que se oculta por trás de sua soberania” (Jünger)

Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és.” (Jünger)

[…] Sob a coação da disponibilidade, tudo é tornado alcançável e consumível. O habitus digital anuncia: tudo tem de estar imediatamente disponível… Falta a ela a ‘lentidão da timidez hesitante diante do infactível.

[…] O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar. A indisponibilidade caracteriza também a outridade do outro, a alteridade. Ela o protege de degradar-se em um objeto consumível.”

[…] A espera que se demora no longo e lento aponta para uma intencionalidade especial. Ela é uma atitude do se incluir no indisponível.”


Sociedade Paliativa: a dor hoje.

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