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22 de março de 2025

Baú oriental

Quando era um garoto, Pietro, em uma de suas excursões de exploração pela casa de seus bisavós – uma casa que ainda chamam de Pensão Bem-te-vi devido ao fato de ter sido uma pensão com uns 20 pequenos quartos em uma construção que vinha logo após os cômodos que abrigavam sua família – encontrou um objeto que o deixou fascinado.

Depois do impacto da descoberta, verificou se não havia alguma possibilidade de alguém surpreendê-lo ali no quarto de sua bisavó e foi tomado por um misto de sensações que jamais havia experimentado.

Desejo e medo se associaram e o impeliram a criar coragem para tocar o objeto de seu interesse: o baú que, segundo as histórias contadas nos dias de festas entre a família, pertencera ao seu bisavô.

Aquele que – também segundo as histórias contadas e recontadas – o havia trazido com seus mais estimados pertences dentro, quando veio do Japão para reconstruir sua vida em terras brasileiras.

Contava-se que ele, Sakuji, havia escalado montanhas, entrado em um vulcão adormecido, fundado a primeira escola de karatê, bem como organizara os primeiros encontros da associação japonesa, Kaikan, na cidade onde ele e sua bisavó, Yaeko, fixaram residência após trabalharem na lavoura por alguns anos em outra cidade da região do interior paulista.

Ao abrir o baú, foi como se adentrasse em outro universo: espadas, baralhos, tecidos os mais diversos, kimonos tão macios, livros e outros objetos que indicavam alguns dos usos e costumes da cultura de seus antepassados e lhe davam uma justa referência.

Pietro ficou paralisado. Olhar arregalado. Tateando com cuidado para não alterar a ordem claramente mantida na preservação daquela riqueza e também para evitar produzir qualquer ruído que pudesse denunciar sua ação de garoto arteiro.

Examinando, retirou um caderno lá dentro e, bem no meio daquele monte de signos que não sabia como decodificar, encontrou uma folha solta com uma única frase que o deixou intrigado. O que estaria escrito ali? Será algum dia poderia saber?

Dobrou a folha em quatro partes, fechou e guardou o caderno em seu devido lugar e, para si, reservou aquela preciosidade. Colocando-a em um dos bolsos da frente da bermuda feita de retalhos por sua avó, Teruko. Ninguém acreditaria que ele havia encontrado e era o guardião daquele tesouro. Talvez um dia poderia decifrá-lo e revelar para todo o mundo seu segredo.

O tempo passava e, por mais que tivesse sempre mais e mais obrigações, Pietro não se esquecia daquela folha amarelada guardada com esmero em uma pasta que ficava na parte superior de seu guarda-roupa.

Por que seu bisavô anotara aquela única frase sem aspas em uma folha avulsa de papel e a colocara bem no meio de seu diário? Supondo que fosse realmente seu diário, tal frase seria fruto de suas reflexões ou traria algo passado de geração em geração?

Por que ele, Pietro, não mostrava logo a tal folha daquele papel tão fino para a sua avó e tentava achar alguém que soubesse traduzi-la?

Nem em pensamento ele queria perder aquela sensação de frio na barriga de quando lembrava de seu tesouro. Aquele ente resgatado de um baú mágico que, pelo que soube após o falecimento de sua bisavó, fora doado e ninguém sabia ou queria dizer o que haviam feito dele e muito menos do que restara do seu conteúdo.

Outra porção de tempo passou e Pietro foi surpreendido mais uma vez. Agora, com a possibilidade de tentar a vida no país que seus antepassados maternos nasceram.

Trabalhar no Japão era algo que jamais havia passado pela sua cabeça. Foi um tio que residia na capital paulista que enviara uma carta à sua avó dizendo que tanto ela, quanto suas duas irmãs mais velhas, haviam sido registradas por seu pai no Japão. Elas, por conta desse gesto, tinham dupla nacionalidade e seus filhos e netos, caso quisessem, poderiam embarcar nessa viagem como dekasseguis.

Pelo telefone, Pietro combinou com seu tio-bisavô uma data para ir conhecê-lo e pegar uma cópia do que supôs ser a árvore genealógica que seu tio havia conseguido após entrar em contato com seus parentes vivos aqui no Brasil e em algumas partes do Japão. Um longo processo – segundo seu tio, um velhinho muito simpático e solícito.

Tio Sussumo recebeu Pietro e seu irmão caçula, Giovanne, em sua residência, falou sobre sua vinda e permanência aqui no Brasil, serviu um delicioso e saudável almoço e entregou o documento chamado de Koseki Tohon.

Enquanto seu irmão fazia algumas perguntas para o tio que acabaram de ter a honra de conhecer, Pietro olhava os quadros da parede da sala. Eram fantásticos. Exibiam paisagens que ele jamais saberia descrever, não por serem carregadas em detalhes, mas justamente por sua simplicidade. Eram como haikais. Concisos, harmônicos, belos, essenciais.

Dentre esses quadros um deles fez seus olhos se fixarem e se demorarem muito mais. Sua atenção redobrou e suas sobrancelhas se arquearam para que ele pudesse reconhecer de fato o que estava vendo. Era, sem tirar nem por, a mesma frase que estava registrada em seu tesouro pessoal. As mesmas letras, no mesmo formato de escrita, agora enquadrados e expostos para quem passasse por aquela sala e se desse ao trabalho de ver.

Não era possível, sussurrou Pietro. Aquilo só poderia ser fruto do seu estado emocional de grande ansiedade por conta da viagem ou alguém estaria lhe pregando peças. Disse algo que não se lembra, mas foi prontamente ouvido por seu tio.

Pediu desculpas por interromper a conversa, mas não se conteve e contou toda a história do seu tesouro, assumindo a responsabilidade por seu crime perante toda a família, e questionou seu tio sobre o significado daquela frase, destacada naquele quadro, bem no centro da parede da sala.

Tio Sussumo foi cirúrgico. Aí está escrito o seguinte:

Liberdade não é o direito de fazer tudo o que se quer. É o dever de fazer o que precisa ser feito.

Pietro passou a refletir sobre o seu significado durante o seu tempo e o tempo das máquinas que operava no período em que trabalhou em uma fábrica japonesa.

Depois que pegou o jeito, entendeu a lógica do mecanismo que ajudava a sustentar ao produzir as peças de cerâmica nas quais fundia o cobre, passando-as pelo forno, conseguia – entre os processos – registrar no bloquinho de papel que lhe deram na semana de treinamento muitas das memórias que guardava direta ou indiretamente em razão daquela mensagem quase secreta.

Essa é uma delas.

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