30 de março de 2025
entrega
29 de março de 2025
Bad Religion - 21st Century (Digital Boy)
28 de março de 2025
motivação
27 de março de 2025
Dave Brubeck Trio & Gerry Mulligan - Live At The Berlin Philharmonie [1973]
25 de março de 2025
Zamiátin
[…] “Tendo submetido a Fome, o Estado Único conduziu uma ofensiva contra outro senhor do mundo: o Amor. Finalmente, esse elemento também foi vencido, isto é, organizado e matematizado, e por volta de trezentos anos atrás foi promulgada nossa histórica Lex Sexualis: ‘todo número tem direito a qualquer outro número como produto sexual’.”
[…] “E o que para os antigos era fonte de inumeráveis e tolas tragédias em nossa sociedade foi convertido em harmoniosas, agradáveis e úteis funções do organismo, assim como o sono, o trabalho físico, a ingestão de alimentos, a defecação etc.”
Sugestões de leitura IV
24 de março de 2025
espelho
Jethro Tull - Benefit [1970]
23 de março de 2025
Andreas Vollenweider - Down To The Moon [1986]
22 de março de 2025
Baú oriental
Quando era um garoto, Pietro, em uma de suas excursões de exploração pela casa de seus bisavós – uma casa que ainda chamam de Pensão Bem-te-vi devido ao fato de ter sido uma pensão com uns 20 pequenos quartos em uma construção que vinha logo após os cômodos que abrigavam sua família – encontrou um objeto que o deixou fascinado.
Depois do impacto da descoberta, verificou se não havia alguma possibilidade de alguém surpreendê-lo ali no quarto de sua bisavó e foi tomado por um misto de sensações que jamais havia experimentado.
Desejo e medo se associaram e o impeliram a criar coragem para tocar o objeto de seu interesse: o baú que, segundo as histórias contadas nos dias de festas entre a família, pertencera ao seu bisavô.
Aquele que – também segundo as histórias contadas e recontadas – o havia trazido com seus mais estimados pertences dentro, quando veio do Japão para reconstruir sua vida em terras brasileiras.
Contava-se que ele, Sakuji, havia escalado montanhas, entrado em um vulcão adormecido, fundado a primeira escola de karatê, bem como organizara os primeiros encontros da associação japonesa, Kaikan, na cidade onde ele e sua bisavó, Yaeko, fixaram residência após trabalharem na lavoura por alguns anos em outra cidade da região do interior paulista.
Ao abrir o baú, foi como se adentrasse em outro universo: espadas, baralhos, tecidos os mais diversos, kimonos tão macios, livros e outros objetos que indicavam alguns dos usos e costumes da cultura de seus antepassados e lhe davam uma justa referência.
Pietro ficou paralisado. Olhar arregalado. Tateando com cuidado para não alterar a ordem claramente mantida na preservação daquela riqueza e também para evitar produzir qualquer ruído que pudesse denunciar sua ação de garoto arteiro.
Examinando, retirou um caderno lá dentro e, bem no meio daquele monte de signos que não sabia como decodificar, encontrou uma folha solta com uma única frase que o deixou intrigado. O que estaria escrito ali? Será algum dia poderia saber?
Dobrou a folha em quatro partes, fechou e guardou o caderno em seu devido lugar e, para si, reservou aquela preciosidade. Colocando-a em um dos bolsos da frente da bermuda feita de retalhos por sua avó, Teruko. Ninguém acreditaria que ele havia encontrado e era o guardião daquele tesouro. Talvez um dia poderia decifrá-lo e revelar para todo o mundo seu segredo.
O tempo passava e, por mais que tivesse sempre mais e mais obrigações, Pietro não se esquecia daquela folha amarelada guardada com esmero em uma pasta que ficava na parte superior de seu guarda-roupa.
Por que seu bisavô anotara aquela única frase sem aspas em uma folha avulsa de papel e a colocara bem no meio de seu diário? Supondo que fosse realmente seu diário, tal frase seria fruto de suas reflexões ou traria algo passado de geração em geração?
Por que ele, Pietro, não mostrava logo a tal folha daquele papel tão fino para a sua avó e tentava achar alguém que soubesse traduzi-la?
Nem em pensamento ele queria perder aquela sensação de frio na barriga de quando lembrava de seu tesouro. Aquele ente resgatado de um baú mágico que, pelo que soube após o falecimento de sua bisavó, fora doado e ninguém sabia ou queria dizer o que haviam feito dele e muito menos do que restara do seu conteúdo.
Outra porção de tempo passou e Pietro foi surpreendido mais uma vez. Agora, com a possibilidade de tentar a vida no país que seus antepassados maternos nasceram.
Trabalhar no Japão era algo que jamais havia passado pela sua cabeça. Foi um tio que residia na capital paulista que enviara uma carta à sua avó dizendo que tanto ela, quanto suas duas irmãs mais velhas, haviam sido registradas por seu pai no Japão. Elas, por conta desse gesto, tinham dupla nacionalidade e seus filhos e netos, caso quisessem, poderiam embarcar nessa viagem como dekasseguis.
Pelo telefone, Pietro combinou com seu tio-bisavô uma data para ir conhecê-lo e pegar uma cópia do que supôs ser a árvore genealógica que seu tio havia conseguido após entrar em contato com seus parentes vivos aqui no Brasil e em algumas partes do Japão. Um longo processo – segundo seu tio, um velhinho muito simpático e solícito.
Tio Sussumo recebeu Pietro e seu irmão caçula, Giovanne, em sua residência, falou sobre sua vinda e permanência aqui no Brasil, serviu um delicioso e saudável almoço e entregou o documento chamado de Koseki Tohon.
Enquanto seu irmão fazia algumas perguntas para o tio que acabaram de ter a honra de conhecer, Pietro olhava os quadros da parede da sala. Eram fantásticos. Exibiam paisagens que ele jamais saberia descrever, não por serem carregadas em detalhes, mas justamente por sua simplicidade. Eram como haikais. Concisos, harmônicos, belos, essenciais.
Dentre esses quadros um deles fez seus olhos se fixarem e se demorarem muito mais. Sua atenção redobrou e suas sobrancelhas se arquearam para que ele pudesse reconhecer de fato o que estava vendo. Era, sem tirar nem por, a mesma frase que estava registrada em seu tesouro pessoal. As mesmas letras, no mesmo formato de escrita, agora enquadrados e expostos para quem passasse por aquela sala e se desse ao trabalho de ver.
Não era possível, sussurrou Pietro. Aquilo só poderia ser fruto do seu estado emocional de grande ansiedade por conta da viagem ou alguém estaria lhe pregando peças. Disse algo que não se lembra, mas foi prontamente ouvido por seu tio.
Pediu desculpas por interromper a conversa, mas não se conteve e contou toda a história do seu tesouro, assumindo a responsabilidade por seu crime perante toda a família, e questionou seu tio sobre o significado daquela frase, destacada naquele quadro, bem no centro da parede da sala.
Tio Sussumo foi cirúrgico. Aí está escrito o seguinte:
Liberdade não é o direito de fazer tudo o que se quer. É o dever de fazer o que precisa ser feito.
Pietro passou a refletir sobre o seu significado durante o seu tempo e o tempo das máquinas que operava no período em que trabalhou em uma fábrica japonesa.
Depois que pegou o jeito, entendeu a lógica do mecanismo que ajudava a sustentar ao produzir as peças de cerâmica nas quais fundia o cobre, passando-as pelo forno, conseguia – entre os processos – registrar no bloquinho de papel que lhe deram na semana de treinamento muitas das memórias que guardava direta ou indiretamente em razão daquela mensagem quase secreta.
Essa é uma delas.
20 de março de 2025
expansão reversa
Rush - Time Machine: Live In Cleveland 2011
17 de março de 2025
Garage Fuzz - Lead A Pointless Life
16 de março de 2025
obtuso simbolizar
Camel - Camel [1973]
15 de março de 2025
descrição
conectar
14 de março de 2025
Kurt Vonnegut Jr.
“De onde eu tiro as minhas idéias? Você pode muito bem ter feito a mesma pergunta para Beethoven. Ele estava de bobeira na Alemanha como todo mundo e, de repente, uma coisa começou a brotar dele. Era música. Eu estava de bobeira como todo mundo em Indiana e, de repente, uma coisa começou a brotar. Era nojo da civilização.”
13 de março de 2025
Byung-Chu Han
“Dores são cifras. Elas contêm a chave para o entendimento de toda a sociedade.”
“Hoje impera por todo lugar uma algofobia, uma angústia generalizada diante da dor[…] A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Toda condição dolorosa é evitada.”
“Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e passa, da psicologia negativa como ‘psicologia do sofrimento’, para a ‘psicologia positiva’, que se ocupa com o bem-estar, a felicidade e o otimismo.”
“A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica do desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala-se até mesmo de crescimento pós-traumático.”
“A missão de felicidade da psicologia positiva e a promessa de um oásis de bem-estar medicamente produzível são irmanadas.”
“Não por acaso o especialista em dor estadunidense David B. Morris já notava, décadas atrás: ‘Os americanos de hoje pertencem, provavelmente, à primeira geração da Terra que veem uma existência livre da dor como um direito constitucional. Dores são um escândalo’.”
“A sociedade paliativa é, ademais, uma sociedade do curtir. Ela degenera em uma mania de curtição. Tudo é alisado até que provoque bem-estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor. Não apenas a arte, mas também a própria vida tem de ser instagramável, ou seja, livre de ângulos e cantos, de conflitos e contradições que poderiam provocar dor. Esquece-se que a dor purifica. Falta, à cultura da curtição, a possibilidade da catarse.”
“Artistas se encontram, eles mesmos, sob a coação de se estabelecerem como marcas. Eles se tornam conformes ao mercado e curtíveis[…] A criatividade como estratégia econômica permite, porém, apenas variações do igual. Ela não tem nenhum acesso ao inteiramente outro. Falta a ela a negatividade da ruptura, que dói.”
“Seja feliz é a nova fórmula da dominação[…] Como capital positivo, a felicidade deve garantir uma capacidade para o desempenho ininterrupta. Automotivação e auto-otimização fazem o dispositivo de felicidade neoliberal muito eficiente, pois a dominação se exerce sem nenhum grande esforço. O submetido nem sequer tem consciência de sua submissão. Ele se supõe livre.”
“No regime neoliberal, também o poder toma uma forma positiva. Ele se torna smart. Em oposição ao poder disciplinar repressivo, o poder smart não provoca dor[…] A submissão se realiza com auto-otimização e autorrealização.”
“Somos permanentemente requeridos a comunicar nossas carências, desejos e preferências e a narrar a nossa vida. Comunicação total e vigilância total, exposição pornográfica e vigilância panóptica coincidem.”
“O dispositivo de felicidade neoliberal nos distrai do sistema de dominação[…] Ele cuida para que cada um se ocupe apensas consigo mesmo, com a sua própria psyché, em vez de interrogar criticamente as relações sociais. O sofrimento pelo qual a sociedade seria responsabilizável é privatizado e psicologizado. Devem se melhorar não as condições sociais, mas sim as da alma.”
“Assim, a psicologia positiva sela o fim da revolução. Não revolucionários, mas treinadores de motivação tomam o palco, e cuidam para que não surja nenhum descontentamento, nenhuma raiva.”
“Dê boas-vindas a toda ‘mudança’ angustiante e a veja como uma oportunidade.”
“O cansaço na sociedade do desempenho neoliberal é não político[…] Ele é um sintoma do sujeito do desempenho sobrecarregado e narcísico.”
“A vida é reduzida a um processo biológico que deve ser otimizado. Ela perde toda dimensão metafísica. O self-tracking evolui em cada culto. A hipocondria digital, a permanente automedicação com apps de saúde e fitness degradam a vida a uma função. A vida é despida de toda narrativa promotora de sentido. Ela não é mais o narrável, mas o mensurável e o contável. A vida se torna nua, sim, obscena. Nada promete permanência.”
“Hoje nos parece especialmente difícil morrer, pois não é mais possível encerrar a vida de modo dotado de sentido. Ela termina em um tempo inoportuno. Quem não consegue morrer no tempo certo tem de terminar em tempo inoportuno. Envelhecemos sem nos tornarmos velhos.”
“A sociedade dominada pela histeria da sobrevivência é uma sociedade dos mortos-vivos.”
“Justamente na modernidade, no qual o meio ambiente produz cada vez menos dor em nós, nossos nervos de dor parecem se tornar cada vez mais sensíveis. A algofobia nos torna extremamente sensíveis à dor. Ela pode, até mesmo, induzir dores.”
“É, justamente, a própria e persistente ausência de sentido da vida que dói.”
“[…] A violência também é o excesso de positividade que se manifesta como hiperdesempenho, hipercomunicação e hiperestimulação. A violência da positividade leva a dores de sobrecarga.”
“[…] O servo tira o chicote da mão do senhor e chicoteia a si próprio para se tornar senhor, sim, para ser livre. O sujeito do desempenho está em guerra consigo mesmo."
“O comportamento autoagressivo cresce rapidamente hoje. ‘Fendas’ se desenvolvem em uma epidemia global. Retratos de cortes profundos que se fez em si mesmo circulam em redes sociais(…) Eles apontam para a sociedade dominada pelo narcisismo, na qual cada um está carregado consigo mesmo até o ponto da insuportabilidade. ‘Fendas’ são uma tentativa vã de descartar esse fardo do ego, de irromper para fora de si mesmo, para fora das tensões destrutivas internas. Esses novos retratos da dor são o outro lado sangrento das selfies.”
“Viktor von Weizsäcker descreve a cena originária da cura da seguinte forma: Quando a irmãzinha vê o irmãozinho com dor, ela encontra, antes de todo conhecimento, um caminho: acariciante, a sua mão encontra o caminho, acariciante, ela quer tocá-lo lá, onde dói – assim, a pequena samaritana se torna a primeira médica.”
“Hoje, nos afastamo-nos cada vez mais dessa cena originária da cura. Torna-se cada vez mais rara a experiência do cuidado curador como sensação de ser tocado e abordado. Vivemos em uma sociedade com crescente solidão e isolamento."
“[…] Para dores, a solidão e a experiência de proximidade faltante funcionam como um amplificador. Talvez dores crônicas como aqueles cortes autoinduzidos sejam um grito do corpo por atenção e por proximidade, sim, pelo amor, uma indicação eloquente de que, hoje, dificilmente ocorrem contatos. Falta-nos, evidentemente, a curadora mão do outro. Nenhum analgésico pode substituir aquela cena originária da cura.”
“[…] Apenas verdades doem. Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdade, um inferno do igual… A dor é um critério confiável da verdade, um ‘instrumento da separação do verdadeiro e do falso nas manifestações do vivente.”
“[…] Sem dor, nem amamos, nem vivemos. A vida é sacrificada pela sobrevivência confortável. Apenas uma relação viva, um verdadeiro um-com-o-outro, é capaz de dor. Um um-ao-lado-do-outro sem vida e funcional não sente nenhuma dor, mesmo se ele desmorona.”
“[…] O amor como consumo, que coisifica o outro em um objeto sexual, não dói. Ele é o oposto ao Eros como desejo pelo outro.”
“[…] Sem dor, não é possível nenhuma avaliação de valor que se apoie em distinções.”
[…] O contínuo curtir leva a um embotamento, a uma desconstrução da realidade. A digitalização é anestesiação.”
“A dor acentua a autopercepção. Ela delineia o si. Ela desenha seus contornos. O crescente comportamento autoagressivo pode ser compreendido como uma tentativa desesperada do eu narcísico e tornado depressivo de se assegurar de si mesmo, de se perceber. Sinto dor, logo existo… Se ela desaparece inteiramente, busca-se por substitutos. Dores produzidas artificialmente fornecem um remédio [para a ausência de dor]. Esportes extremos e comportamentos de risco são tentativas de se assegurar de sua própria existência.”
“Assim, a sociedade paliativa produz, paradoxalmente, extremistas. Sem cultura da dor surge barbárie: ‘Estímulos cada vez mais fortes são necessários para se dar ao ser humano em uma sociedade anestesiada um sentimento de vivacidade. Drogas, violência e terror são os únicos estímulos que ainda podem mediar [uma] autoexperiência.”
“[…] A dor, por isso, não vem ao espírito de fora… O espírito conquista a sua verdade apenas ao encontrar a si mesmo na completa dilaceração.”
“[…] Em oposição ao prazer, a dor põe em movimento um processo de reflexão… Ela torna o espírito clarividente.”
“[…] A dor obriga aquele que cria a sentir o até então [existente], como insustentável, falho, digno de recusa, detestável.”
“A dor faz parte daquelas chaves com as quais se abre não apenas o íntimo, mas também, ao mesmo tempo, o mundo. Quando nos aproximamos dos pontos nos quais o ser humano se mostra amadurecido para a dor ou superior a ela, ganhamos, assim, acesso às fontes de seu poder e ao segredo que se oculta por trás de sua soberania” (Jünger)
“Me diga a sua relação com a dor e eu te direi quem és.” (Jünger)
“[…] Sob a coação da disponibilidade, tudo é tornado alcançável e consumível. O habitus digital anuncia: tudo tem de estar imediatamente disponível… Falta a ela a ‘lentidão da timidez hesitante diante do infactível.”
“[…] O mundo disponível perde a aura, sim, o aroma. Ele não permite nenhum se demorar. A indisponibilidade caracteriza também a outridade do outro, a alteridade. Ela o protege de degradar-se em um objeto consumível.”
“[…] A espera que se demora no longo e lento aponta para uma intencionalidade especial. Ela é uma atitude do se incluir no indisponível.”
Sociedade Paliativa: a dor hoje.
12 de março de 2025
Jameson - Color Him In [1967]
11 de março de 2025
Pete Bardens - Seen One Earth [1987]
10 de março de 2025
funcional
9 de março de 2025
Ciclos
Nem todo ciclo se encerra naturalmente. Alguns
requerem uma boa dose de insistência. Discernimento, autorrespeito e
autogestão para acalmar a agitação que transita pelo duo
corpo/mente. Reaprendizado para pousar o olhar onde a visão não está coaptada a ser condescendente. Incorporado após vivenciar a
angústia, a ira e o luto decentemente. Acondicionando as lembranças
sem as bricolagens que nos acostumamos a fazer com os fatos que sucederam. Exemplo. A passagem da sociedade do controle e/ou disciplinar
para a sociedade do desempenho. Ao contrário do que muitos pensam,
não foi uma transição que simplesmente se deu devido à evolução
das condições naturais que evolvem nossa existência. Os mecanismos
de domínio foram relativizados até o limite de não precisarem
serem impostos de fora para dentro das humanas consciências.
Introjetados como liberdade de tudo poder fazer, como
num cenário de comercial de cartão de crédito, o indivíduo se
assumiu como vítima e carrasco de si mesmo. Cumprindo os ditames da
performática ausência e se punindo quando o fracasso aparece.
Fracasso que também é parte do processo de voluntário alistamento
para que a busca por melhores scores nunca termine e os cases de
sucesso sejam perseguidos indefinidamente. Sem alteridade, uma
multidão ensandecida de potenciais sujeitos vai se igualando de uma
forma talvez nunca vista anteriormente. Procurando se diferenciar
exteriormente [e ficando cada vez mais padronizada exatamente por
isso], esquece-se de que o maior diferencial provém de dentro, da
subjetividade, a qual, enclausurada e acuada pelo medo de não
pertencer, de ser reprovada pelo cultuado narrador do stand up interno, ataca sem
trégua. Ferida e ferindo, pois do jogo essa é a regra. Vingança
para provar o valor do investimento. Finge-se que nada está
acontecendo, faz-se o que der na telha e esconde-se para baixo dos
tapetes que estamos todos doentes, procurando nos outros – nesses
esbarrões arranjados pelo capital, os quais chamamos de direito à
escolha do lazer que melhor nos aprouver [veja o que fizemos
culturalmente] – algum resquício de vínculo, respeito e
comprometimento. O que me intriga é: Quando deixaremos de lado as
distrações e prestaremos atenção ao modo como estamos nos
desfazendo? Em um mundo onde a positividade é a lei, ser crítico,
recorrer à negatividade de nada fazer que corresponda à reatividade prescrita pelo global experimento, é um modo consciente
de apaziguar o modo sobrevivência e acolher as sutilezas da vivência.
Spyro Gyra - Carnaval [1980]
7 de março de 2025
Vida plena
- Para baixo! – eles repetem.
- Para baixo sem arrependimento! A força está em ir sempre para a frente. Nada de perder mais tempo!
- Cada vez mais para baixo! Essas expectativas têm de descer. Só assim vocês alcançarão o verdadeiro sucesso. Enfim, serão pessoas mais leves.
- Já que ainda insistem em manter essas coisas supérfluas como critérios, que eles sejam meramente figurativos; caso contrário, acabarão tendo que lidar com suas necessidades verdadeiras. Vocês já sabem por experiências passadas o quão dolorido isso pode ser! Aceitem! Rebeldia é pedido de socorro. E compaixão é fraqueza. Revolta é só mais uma estúpida vulnerabilidade que logo será extinta!
- Repitam: eu sou um mero fetiche de um modo de vida antinatural. Eu sou um mero fetiche de um modo de vida antinatural. Eu entreguei minha alma em troca da minha liberdade. Estou pagando as parcelas dessa compra tão honesta! Eu entreguei minha alma em troca da minha liberdade. Estou pagando as parcelas dessa compra tão honesta! Vamos, repitam com entusiamo: Eu sou um mero fetiche…
- Nada de criar vínculos! A moda é clara: ninguém aqui é digno de nada. Quando tiverem desses lapsos, enfadados das novidades e quiserem um passatempo mais radical, usem e abusem de si mesmos. Essa é a mais nova sensação: desumanização generalizada. Uma verdadeira revolução em termos de vivência em todo o planeta.
- Que todos sejam livres! LIVRES! Hoje tudo é permitido! Não se preocupem com as crises de consciência. Tudo é muito, muito relativo! Nossos cientistas estão trabalhando para que esse sistema de culpa seja desestimulado, senão nessa, talvez na próxima geração. Cada um tem SEU jeito de lidar com a SUA vida! Escute nossos coaches e influencers. Adquira seus cursos, invista em seu autodesenvolvimento. Pratique suas estratégias que tudo dará certo! Aceite a autossabotagem, ela é parte desse árduo processo de supressão das SUAS camadas que não prestam.
- O indivíduo é tudo. A sociedade é só mais uma ilusão de nossa cabeça. O indivíduo é tudo. A sociedade é só mais uma ilusão de nossa cabeça. Esqueça essa mentira de que juntos somos mais fortes. Juntos só nos atrapalhamos e não atingimos nossas metas. Esqueça essa mentira de que juntos somos mais fortes. Juntos só nos atrapalhamos e não atingimos nossas metas.
- Repitam: Viva o Individualismo! Viva o Individualismo! Viva o Individualismo!
- Baixem as expectativas! Baixem os critérios até que eles desapareçam e vocês se libertem. Começando a escolher o que lhes trouxer o melhor custo benefício! Repitam antes de ganharem seu prêmio de hoje: Desapego é a lei, o outro é meu servo. Faço o quero e depois eu nego. Desapego é a lei, o outro é meu servo. Faço o quero e depois eu nego. Desapego é a lei, o outro é meu servo. Faço o quero e depois eu nego…
Foi assim que aconteceu o ritual surpresa de meditação e cura realizado naquele dia inesquecível. Um lindo espetáculo que avivou até o mais desolado desumano daquele tempo.
6 de março de 2025
Revolta e rebeldia
Novos ventos sopram de paragens não admitidas. Sacodem os galhos. Espalham as folhas. Grande reviravolta causam na rotina. Sem temor, desiludem os iludidos. Desacreditam a rebeldia tida como única saída diante da ausência de sentido. Mostrando-a como ela é: uma prática de recorrer à adoção de um visual e de uma ideologia qualquer para chamar de sua legítima justificativa. Combo conseguido, exibido e estampado como sinônimo de identidade nas vitrines do dia a dia. Advindo do trabalho morto, aquele que é feito para gerar dinheiro e retroalimentar toda a estrutura de domínio. Usado como mais um curativo para as crises individualistas. Humanos feitos iscas. Livres. Nunca na história tão livres para imitar, recriar e garantir a eficácia do próprio escravismo. Hedonistas fadados ao distanciamento de si e da sua humanidade. Prontos para fugirem de todo desconforto e sobreviverem mirando um horizonte de reativa fantasia. Compreendidas as motivações intrínsecas da rebeldia e seus impactos nulos na transformação da estrutura multifatorial que a aprisiona, a ação pode se transformar em revolta. Trabalhada, pensada e direcionada com sabedoria. Para fins emancipatórios. Não essa compulsão por anestésicos paliativos.
“Mas por que ter pena de si mesmo, em meio a dores generalizadas? Por que fixar-se numa gota d’água? Vamos olhar para o oceano!” [Louise Michel]
Otis Rush - All Your Love (I Miss Loving) Live 1966
5 de março de 2025
Lenny White - Big City [1977]
Sugestões de leitura III
4 de março de 2025
Marc Cary - The Antidote [1998]
A quenga e o cafajeste
A quenga e o cafajeste, no seu modus operandi das baladas, aquele que os movem a consumir e desfrutar das carências e fragilidades alheias como meio de não confrontarem suas próprias, por falta de melhores opções, acabaram juntos certa vez.
Performaram por alguns poucos dias e eis que o cafajeste pediu à quenga para que ela trouxesse uma amiga – podia ser outra quenga, tanto fazia, ele disse – para que melhor ele se satisfizesse.
A quenga recuou, ofendida. Então não bastava estar com ela?! Aquele prêmio que muitos fariam qualquer coisa para tê-lo! Quer dizer que tudo o que ela estava entregando não era suficiente?! Logo desta vez que acreditou ter encontrado um parceiro à sua altura! Logo quando pôs em prática suas fantasias mais intensas, certa de que iria surpreendê-lo!
– Ora, que desfeita! – saiu maldizendo.
– Não fique assim, gata! Não foi bem isso o que eu quis dizer. Eu só quero o nosso bem... Me diz, onde e quando vai ser nosso próximo rolê?
[Pra quem acha
que não é nada,
qualquer migalha serve]