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16 de junho de 2011

A menina que sonhava

    Ela saiu de seu túmulo com os sapatos gastos, encharcados de recordações, sem querer demonstrar qualquer sentimento pela estupidez humana. Caminhava com calma, como se estivesse longe da selva de gente onde vivia aprisionada. Não olhava, contemplava. Não sorria, não chorava. Apenas estava. Um pouco inteira, depois de ter sido retalhada. Lembrava dos rostos, dos gestos, das falas. Dos cheiros, dos toques, de todas as vezes que suplicara. Como poderia esquecer se, durante anos, tudo isso foi a sua alternativa para a angústia que iria colocá-la frente a frente com sua mania de se expor à realidade? Confiava. Associava suas emoções, suas sensações, seus pensamentos. Sua vontade. Seus instintos. Acreditava. Eles formavam um belo par. Era assim que ela, também ela, sozinha, os imaginava. Como algo tão certo pode dar tão errado? Tudo, ou melhor, praticamente tudo, acalentava sua cumplicidade. Ao seu lado, sorria, cantava... Despedaçava-se. Toda vez que ele a abandonava. Velha ou nova amiga de quem tanto ele lhe falava. Quantas vezes ele confundira-se? Enganara-se, tomando uma pela outra nos momentos em que ela mais o admirava? Era claro o que se passava, mas ela não divisava. Amava. Sem pensar que deveria retribuir nada. Simplesmente expressava. Sua carência, seus medos, seus ciúmes. Sua parcela de humanidade. Ele, por seu lado, desconfiava. Não a entendia. Sequer lhe escutava. Tão centrado em si mesmo. Difícil aceitar que uma vida pudesse se resumir a fases. Os carinhos dela o tornavam cada vez mais alheio aos significados. De todas as justificativas que ele usara. Ora, ora, eis um passado que não conseguia deixar de ser frisado. Por que não admitia? Por que não falava a verdade? Por que a convidara, então, se já não acreditava em mais nada? Talvez almejasse estar num lugar onde não mais estava. Querela de esperança virara farsa, e ela, a menina que sonhava, é que deveria respirá-la. Até o dia em que ele resolveu sepultá-la – com todo o respaldo das estrelas que ela via dando as mais sonoras gargalhadas.

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