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27 de março de 2020

Estamos prontos?

- O que você acha que está acontecendo?
- Como assim?
- Com o caos… Como ele pode ter assumido essa aparência de perfeição?
- Ah?!
- Tenho achado que algumas pessoas acreditam que a vida está explicada, pronta demais. Muitos de nós já não consideram a questão da margem de erro, parecem tão absolutos em suas conclusões… Será que as probabilidades, as aleatoriedades passaram a ser tão inquestionáveis para toda essa gente?
- Olha, eu não sei… Talvez as fontes de nossas informações não tenham mudado tanto quanto a gente imagina. Algumas pessoas ainda mantém o controle. Talvez nos falte entender um pouco mais sobre variáveis, contexto. Aprender, inclusive, separar informação de conhecimento.
- Por falar nisso, eu mesma me esqueci de falar sobre qual contexto estou me referindo.
- Esqueceu mesmo.
- Quero te contar uma breve história para que você se localize melhor sobre o que quero dizer, ok?
- Vá em frente!
- Há um tempo conversei com uma senhora em um supermercado e ela me disse algo que me deixou no mínimo intrigada... Ela disse que a gente deve ter muito cuidado, pois estamos atrapalhando os planos de deus em nosso planeta. Afirmou que ele já havia manifestado suas intenções, revelando os seus mandamentos aos homens santos que que acabaram por registrá-los na bíblia.
- Nossa!
- Ela fixou bem seus olhos em mim e disse que não demora as profecias logo se concretizarão e não vai adiantar rezar, implorar pela bondade eterna, pois nenhum milagre será realizado para nos salvar. O juízo final já foi anunciado e, como não demos o devido valor a essa verdade, exagerando no livre arbítrio, não temos nem sequer do que nos queixar.
- Você ficou com medo do que ela disse?
- Não, não fiquei com medo. Fiquei pensando sobre a forma como ela anunciava todas essas ideias, sugestões, impressões, sem qualquer embasamento além do que ela ouviu ao longo de sua vida. Digo isso, pois perguntei se ela ao menos tinha lido a bíblia alguma vez e ela me disse que não precisava, pois “existem pessoas que são criadas para interpretá-la por nós”.
- Estranho mesmoIsso parece fatalismo, sem falar no determinismo que essa senhora acredita imperar por aqui.
- É, se fizermos esse tipo de declaração em qualquer outro contexto que não o religioso – que consideram algo sagrado – seríamos tidos como malucos, não?
- Sem dúvida. O problema é que existe essa ideia tirana de que fé é fé, não se discute, e que a razão não deve ser tão pretensiosa a ponto de ser usada para pensá-la. Santo Agostinho chegou a registrar esse pensamento de que a fé é inimiga da razão.
- Ela disse tudo isso como se fosse algo que não admite nenhum contraponto, mas eu a questionei sobre a questão das evidências, dos fatos e ela nem aí. Estava meio que blindada, sabe? Só fez a sua ameça, como se os indivíduos da sua geração não tivessem responsabilidade alguma. Disse que vinha fazendo a sua parte e estava certa de que sua alma iria direto para o céu, nem passaria pelo purgatório.
- Alma?! Céu?! Purgatório?!
- Sim, falou sobre essas ideias repetidas como se falasse de átomos, moléculas, fósseis, heliocentrismo...
- Caramba! Mas, o que foi que essa conversa lhe despertou, afinal? Por que você falou de caos aparecendo como perfeição?
- Fiquei pensando… Quantas pessoas não são sugestionadas, amedrontadas por pais, professores, padres, pastores, políticos que vivem reforçando essas ilusões todos os dias por todos os meios possíveis? Já reparou que quase todas as novelas da tevê sempre tem religião no meio? Sem contar os canais que são propriedade de religiosos ou pessoas com muito poder, além dos políticos que usam deus como slogan de campanha e governo. “Por Deus, pela Pátria e pela Família.”
- A maioria das pessoas nem sequer pensa no direito de questionar a religião que foram obrigadas a seguir. Triste e desesperador para uma vida coletiva onde o que deveria prevalecer seria a cidadania e não a culpa. Fica difícil crescer de maneira saudável num meio assim.
- Como um hábito que venho cultivando, perguntei se ela acreditava na Medusa ou no deus Sol… “Imagina, isso é loucura, minha filha!”
- Claro!
- Enfim, o que queria dizer é que essa ameaça de fim de mundo me fez pensar em como somos afetados pela nossa velha mania de tirar/impor conclusões, recebendo as impressões com todas as nossas limitações sensoriais, imaginando padrões que muitas vezes nem existem e achando que estamos prontos para julgar acertadamente qualquer acontecimento.
- Olha, você não está querendo dizer que deixou de tentar, não é mesmo?
- Não, de forma alguma. Não deixei de lado a possibilidade de aperfeiçoar o que me veio por sorte quando, dentre todos os possíveis, fui eu que nasci. Só acho que alguma coisa ficou mais clara pra mim, entende? Talvez seja isso o que estou chamando de caos.
- Você acredita em dom?
- Não existe dom nenhum. O que existe são chances, oportunidades que alguns têm para testar seus potenciais e habilidades, enquanto outros – aqueles que normalmente são chamamos de fracassados – sequer acabam tendo ou explorando essas oportunidades. Acho que todos nós morremos sem saber um monte de coisas que poderíamos fazer. Já ouviu falar da hipótese de que precisamos de no mínimo 10 anos para começar a entender algo metodicamente?
- Já, faz muito sentido.. Mas, que legal essa sua ideia! Isso me fez lembrar de quantas besteiras já fiz e que só agora comecei a entendê-las de uma forma mais séria. Achava que tinha feito a escolha certa, me justifiquei e segui em frente, mas…
- Mas agora você agiria de outra forma.
- Isso! Talvez porque agora eu sei que temos quase nenhum controle, nem sobre o passado nem sobre o futuro, apesar da ilusão que a gente mantém no presente.
- Niilismo?
- O próprio conceito já carrega uma grande soma de pretensão quando queremos que os pensamentos e as ações de algumas pessoas, num determinado momento, se encaixe em nossa definição de niilismo.
- Puxa! Nunca tinha pensado por essa linha de raciocínio.
- Certa vez comentei que uma música do Agent Orange falava de pertencimento como sentido de cuidado e minha amiga achou estranho pois, para ela, pertencer – naquela circunstância – parecia se referir à posse, ser controlado por alguém.
- Nossa! E aí, vocês chegaram a algum consenso sobre esse sentido?
- De uma certa forma, sim. Expliquei a minha posição e ela explicou a dela e ambos ouvimos o outro, não só defendemos uma ideia. Ouvimos sinceramente.
- É difícil…
- O quê?
- Criar ou corresponder às expectativas, se muitas vezes só temos um curto tempo e os valores são quase sempre pensados como padrões dualistas: certo e errado, bem e mal, moral e imoral, deus e o diabo.
- É… Chega a ser um teste, se acreditarmos em destino.
- Destino?
- Sequência de eventos, sensações, raciocínios, potencialidades que vamos incluindo em nossas existências...
- Ah, entendi. Então, como eu ia dizendo, nós somos tudo menos esses seres imaginados, criados e designados para o sucesso ou para a danação que querem nos fazer crer.
- Concordo. A gente, independente da cultura que nos condiciona, acaba esquecendo que somos parte de outro processo correlacionado, se pensarmos em termos de espécie. O que você acha que acontece quando a gente morre?
- A gente morre. Acaba nossa existência. Fim para a gente! Nossa matéria se decompõe e continua a fazer parte da vida.
- Então, será só isso?! Nascemos, aprendemos, tentamos ver se o que aprendemos tem algum fundamento, testamos nossos limites e depois morremos?
- Na minha visão, sim. Mas você se esqueceu de que essa procura alucinada por significados para quase todos as nossas vivências é um aspecto muito importante para a nossa sobrevivência que alguns nem sequer chegam a considerar.
- E como tentamos achar esses significados, hein! O estranho é que eles são culturais, a gente se apropria, mixa e usa – meio que tentando encaixar os fatos neles.
- Ah! Você tá falando das trocas culturais?
- Sim. Nossa originalidade está em selecionar e juntar outros jeitos de parecer e ser e seguir vivendo, escolhendo dentro de um leque muitas vezes tido como o jeito correto de se viver. Estudar, casar, ter ou não ter filhos, comemorar os feriados, participar ou não de algumas festas populares. Para nossos antepassados a busca pela sobrevivência tornava a vida mais desafiadora, porque hoje nos acomodamos com algumas coisas que supostamente nos confortam... Às vezes surgem alguns que vão um pouco além, mas esses são a exceção não a regra. Sem contar que muitas dessas escolhas nem é a gente que faz, às vezes simplesmente vão acontecendo em nossas vidas e quando vamos ver, já foram feitas. Fomos nós os escolhidos!
- Então, a gente…
- A gente tem que seguir. Ganhamos na “loteria” por ter nascido e temos que viver. A vida segue com ou sem a gente, mas podemos fazer algo… É inegável que, além de sermos alterados, também alteramos os meios. Deixamos nossas marcas, sobretudo para que aqueles e aquelas que nos são mais próximos.
- Sabe, essa nossa conversa me lembrou de um filme: Ponto de mutação.
- Sei, muito legal esse filme. Já me disseram que ele é muito monótono, mas eu achei massa, pois os personagens estão em crise, debatem assuntos vitais e também por quebrar com alguns padrões do cinema convencional.
- Onde será que começa esse ponto de mutação?
- Já começou há muito tempo, nós somos consequência desse processo de mutação. Ou você acha que não somos fruto do processo de seleção natural? Já percebeu as “compensações” que a genética faz em nossas vidas, por exemplo, quando filhos de pais com uma altura considerada acima da média nascem dentro do tamanho meio que padrão para a nossa espécie?
- Da mesma forma que pessoas que nascem sem um ou mais sentidos ou os perdem em decorrência de alguma doença ou acidente, acabam desenvolvendo outro ou outros para “compensar” e se adaptar. Acho que o nome desse fenômeno é regressão à media, não é?
- Sim. Isso é fantástico e considerado mais um milagre para alguns. Assim como alguns apostadores na Idade Média que, quando ganhavam, agradeciam a deus por tê-los abençoado.
- E quando perdiam, achavam que estavam sendo castigados. Que loucura! - como diria Woody Allen... Olha, que tal tomarmos um café e continuarmos esse papo depois, hein?
- Tudo bem.
- Tenho que voltar ao meu trabalho. Então, estamos certos? Será que estamos prontos? Conseguiremos levar nossa vida adiante de um jeito diferente depois dessa pandemia?
- Preciso ir. Tenho que ajudar a preparar o discurso do presidente para ver se acabamos de uma vez por todas com essa estupidez de isolamento social. Afinal, como sobreviveremos se não tivermos dinheiro, não é mesmo?

(Algumas referências: Richard Dawkins – Deus um delírio, Leonard Mlodinow – O andar do bêbado, Bernt Amadeus Capra – Ponto de mutação – filme baseado no conto de Fritjof Capra).

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