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19 de maio de 2013

Final feliz

– Você não pode sair!
– Mas, por quê?
– Simplesmente porque ninguém pode sair.
– Como assim, ninguém pode sair?
– Não pode.
– Então, eu estou condenado a ficar aqui?
– Sim, você tem que ficar aqui.
– Mas, ficando aqui, eu não posso fazer nada?
– Não, quero dizer, você pode fazer o que bem entender. Pode criticar, pode até se juntar aos outros que também necessitam expressar seu descontentamento infundado sobre o que temos aqui. Pode inventar, pode até criar (se sua vaidade assim preferir crer) obras de arte, pode protestar. Você tem todo o direito. Pode ir até para outro país, mas sair, não.
– Não se trata de uma mera necessidade e sim de uma vontade, de um princípio. De algo que preciso fazer. Não tem nada a ver com cumprir certas leis que sei muito bem quais são seus fins. Não se trata de obter glórias, de me distinguir. Pelo contrário.
– Ah, já entendi. Você vai acabar percebendo, de um jeito ou de outro, que esta liberdade só se realiza aqui. Nunca ouviu falar que a sua liberdade termina onde começa a do outro?
– Sim já ouvi, mas também já compreendi que o outro não é o limite para a minha liberdade, mas a condição para atingir – mediante a cooperação, a reciprocidade, a responsabilidade e o compromisso – nossa liberdade. Não vejo porque tenho que continuar aqui, ajudando a manter todo este extermínio.
– Que extermínio?!
– Ora, você não vê o preço que pagamos por esse globalitarismo?
– Globalitarismo?! Nós vivemos numa democracia! A mais legitima possível! Olha, vou lhe explicar: existem coisas que podemos e coisas que não podemos fazer. Veja, mesmo que eu queira, não posso voar, tal como um pássaro. Somos limitados!
– Sim, somos limitados física e culturalmente, mas, ao contrário dos limites físicos, podemos reinventar os significados culturais. Podemos saber que somos condicionados, o que é totalmente diferente de estarmos limitados a isso. Não somos tão determinados assim!
– Isso é o que você pensa.
– Mas pensar não amplia as minhas possibilidades?!
– Amplia, mas, ao mesmo tempo, lhe limita, porque sabendo, você vai deixando cada vez mais de ser feliz.
– Feliz?! Acha que há como ser feliz estando preso aqui?
– Muitos acham, quero dizer, sentem-se felizes.
– Como?!
– Ora, vivendo a vida, fazendo o que todos fazem por aqui.
– Não, eu não quero fazer o que todos, ou melhor, o que a maioria está fazendo, pelo simples fato de que há algo mais a ser feito além de se adaptar, se conformar com todas essas competições em todas as instâncias da nossa vida, na vã tentativa de sermos recompensados pelos nossos bons comportamentos tão incentivados pelas estrelas que brilham por seus luxos e por seus trabalhos sociais que, desse jeito, nunca hão de ter fim.
– Olha aqui, meu amigo, então você vai ter sérios problemas. Ninguém consegue sair, a não ser pelas vias da imaginação. Essa é a única alternativa, está satisfeito, agora?
– Não, eu quero sair de fato, não só através da imaginação. Não consigo só achar, só supor que sou livre, quando, na verdade, não sou. Não sei como todos esses seres conseguem.
– Simples. Eles pensam que é assim. Por isso, vão dançando conforme a música, como se diz.
– Isto é o que você pensa. O que você quer acreditar, porque isso lhe beneficia de algum modo. Não é a realidade.
– Procure na história e me diga: quem tentou, onde foi parar? Ou acabaram loucos, ou acabaram se suicidando.
– Sim, alguns acabaram assim, mas eu vou sair! Há possibilidades. E não é porque alguns homens e mulheres pensaram e ainda pensam que não existem alternativas além destas, que elas não existam. Suas justificativas não vão me amedrontar!
– Não? Aí é que você se engana! Essas alternativas de que você vive a me falar, não existem. Você não vê? Este é o melhor dos mundos possíveis, por isso estamos evoluindo. Espanta-me que você não consiga sentir isso em sua própria pele. Que você não possa tirar disso aqui nenhum tipo de bem-estar. Nunca fomos tão livres e, consequentemente, tão felizes. Tudo é permitido. O prazer que hoje temos não tem mais limites.
– O que temos aqui? Vamos, me diga!
– Temos divertimentos. Nunca tivemos tantos. Todos estão contentes. Não dá para negar que hoje todos têm acesso às mercadorias, quero dizer, às novidades, às tecnologias que tanto nos facilitam, nos fazem relaxar depois e até durante as poucas horinhas que estamos envolvidos com nossos trabalhos altamente produtivos.
– Ah, você chama essas besteiras de divertimentos. Eu os chamo entretenimentos. Coisas criadas para que nós continuemos escravizados e desperdicemos nosso tempo vital. Trabalho produtivo?! Para quem? A custa de quantas vidas?
– Você exagera! Por isso, não vive, não aproveita as oportunidades únicas que só a gente tem. Seu espírito é doentio, meu querido!
– Exagero?! Você exagera! Não pensa nos inúmeros problemas que tudo isso está acarretando. Não percebe que estamos cada vez mais infelizes e que compramos cada vez mais coisas para tentar nos livrarmos desta infelicidade, mas, ao contrário do que vocês querem nos fazer crer, ficamos muito mais ansiosos, mais deprimidos e isso nos leva novamente a consumir outras coisas que logo descartamos com uma rapidez cada vez maior, pois elas não nos satisfazem, mas somente a vocês que se julgam menos miseráveis por conta disso.
– Penso, mas não será esse ciclo o nosso destino por aqui?
– Não.
– Não há nada além daqui. Veja esse céu maravilhoso, veja esse povo tão lutador, de sol a sol ajudando a construir um mundo melhor. Você tem uma missão a cumprir. Não é a toa que está aqui. Não pode simplesmente querer abandonar sua família, seus amigos, toda essa história para os outros cumprirem. Não se tocou ainda que a vida é o maior presente que Deus nos deu. Trate de viver! E de viver muito bem! Aqui!
– Eu não quero abandonar minha família, meus amigos, enfim, quero todos eles muito mais próximos de mim. No entanto, não assim. Desse jeito tão frio. Tão sem sabor. Quero mergulhar, tocar o fundo, fazer parte dos recifes que encalham e destroçam as embarcações que não têm outros fins além dos militares-mercantis.
– Mas isso é poesia. Que maravilha! Por outro lado, não passa da mais deplorável fantasia. Você é que está querendo que a realidade se adeque, lhe privilegie. Que pretensão! Isso é típico de aberrações, de personalidades autoritárias, extremamente egoístas!
– Que asneira! Vai, saia da minha frente. Ou...
– Ou o quê? Já não lhe disse que não há saída! Você não escuta, não? Revolte-se, proteste, mas aqui. É desejo do nosso Criador. Respeite-O ou vai sofrer as consequências! Aí sim você vai ver o que é sofrimento.
– Cara, você é que não está entendendo...
– Eu estou entendendo perfeitamente, ao contrário de você que se escraviza com suas patéticas fantasias. Esta é a vida que temos, as saídas existem aos montes, use a sua bela e tão privilegiada mente para descobrir...

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