“Daquilo de que os outros não sabem sobre mim, disso eu vivo.” (Peter Handke)
“Nos dias atuais não há mote que domine mais o discurso público do que o tema da transparência. Ele é evocado enfaticamente e conjugado sobretudo com o tema da liberdade de informação. A exigência da transparência intensifica-se de tal modo que se torna um fetiche e um tema totalizante, remontando a uma mudança de paradigma que não se limita ao âmbito da política e da sociedade.”
“As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação. As ações se tornam transparentes quando se transformam em operacionais, quando se subordinam a um processo passível de cálculo, governo e controle.”
“[…] As imagens tornam-se transparentes quando, despojadas de qualquer dramaturgia, coreografia e cenografia, de toda profundidade hermenêutica, de todo sentido, tornam-se pornográficas, que é o contato imediato entre imagem e olho.”
“[…] A comunicação alcança sua velocidade máxima ali onde o igual responde ao igual, onde ocorre uma reação em cadeia do igual. A negatividade da alteridade e do que é alheio ou a resistência do outro atrapalha e retarda a comunicação rasa do igual.”
“[…] Nova palavra para dizer uniformização: transparência.”
“[…] A coerção por transparência nivela o próprio ser humano a um elemento funcional de um sistema. Nisso reside a violência da transparência.”
“A alma humana necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Pertence a ela uma impermeabilidade. Uma total ‘iluminação’ iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnout psíquico. Só máquina é transparente; a espontaneidade e a liberdade não admitem transparência.”
“[…] O ser humano sequer é transparente para consigo mesmo. Segundo Freud, o eu nega precisamente aquilo que o inconsciente afirma e deseja irrestritamente(…) é justamente a falta de transparência do outro que mantém viva a relação.”
“[…] Frente ao pathos da transparência que domina a sociedade atual, seria necessário exercitar o pathos da distância. Vergonha e distância não podem ser integradas no círculo veloz do capital, da informação e da comunicação, para que não sejam eliminados os lugares de refúgio discretos, tornando-se iluminados e saqueados.”
“[…] Uma relação transparente é uma relação morta, à qual falta toda e qualquer atração, toda e qualquer vivacidade, totalmente transparente é apenas o morto.”
“A sociedade positiva tampouco admite qualquer sentimento negativo. Desse modo, esquecemos como se lida com o sofrimento e a dor, esquecemos como dar-lhes forma.”
“[…] Também o amor é nivelado em um arranjo de sentimentos agradáveis e de excitações complexas e sem consequências… O amor é domesticado e positivado para a fórmula de consumo e conformidade, no qual todo e qualquer ferimento deve ser evitado.”
“[…] De um lado eles evitam a fruição do que não é negativo; de outro, em seu lugar entram perturbações psíquicas como esgotamento, cansaço e depressão, que remontam em última instância ao exagero da positividade.”
“[…] Sem a negatividade da distinção é inevitável que as coisas cheguem à proliferação e à promiscuidade generalizada.”
“O veredicto da sociedade positiva é este: ‘Me agrada’. É significativo que o facebook se negue coerentemente a introduzir um emotion de dislike button. A sociedade positiva evita todo e qualquer tipo de negatividade, pois esta paralisa a comunicação. Seu valor é medido apenas pela quantidade e velocidade da troca de informações, sendo que a massa de comunicação também eleva seu valor econômico e veredictos negativos a prejudicam.”
“Transparência e verdade não são idênticos. A verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe, declarando tudo o mais como falso. Mais informação ou um acúmulo de informações, por si sós, não produzem qualquer verdade; faltam-lhes direção, saber e o sentido.”
“[…] A hiperinformação e hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade, sim, a falta de ser. Mais informação e mais comunicação não afastam a fundamental falta de precisão do todo. Pelo contrário, intensifica-a ainda mais.”
“[…] Na sociedade positiva, na qual as coisas, transformadas em mercadorias, têm de ser expostas para ser, seu valor cultual desaparece em favor de seu valor expositivo. Em vista desse valor expositivo, sua existência perde totalmente a importância. Pois, tudo o que repousa em si mesmo, que se demora em si mesmo passou a não ter mais valor, só adquirindo algum valor se for visto.”
“[…] O valor expositivo… deve-se unicamente à produção do chamar a atenção.”
“[…] Já de algum tempo que o ‘semblante humano, com seu valor cultual, desapareceu da fotografia. Na era do facebook e do photoshop o semblante se tornou em face, que se esgota totalmente em seu valor expositivo… a face é a imanência do igual.”
“[…] A fotografia digital caminha de mãos dadas com uma forma de vida totalmente distinta, que se afasta cada vez mais da negatividade. É uma fotografia transparente sem nascimento e sem morte, sem destino e sem evento… Assim, ela não fala.”
“A figura temporal do ‘foi assim’ é para Barthes a essência da fotografia; a foto dá testemunho do que foi. Por isso, seu humor de fundo é a tristeza. Para Barthes, a data é parte da foto, ‘porque faz que se note a vida, a morte, o desaparecer inegável das gerações.”
“Na sociedade expositiva cada sujeito é seu próprio objeto-propaganda; tudo se mensura em seu valor expositivo. A sociedade exposta é uma sociedade pornográfica; tudo está voltado para fora, desvelado, despido, desnudo, exposto. O excesso de exposição transforma tudo em mercadoria que ‘está à mercê da corrosão imediata, sem qualquer mistério.”
“O porno não aniquila apenas o eros, mas também o sexo. A exposição pornográfica não causa apenas uma alienação do prazer sexual, mas torna-o impossível; torna impossível viver o prazer. Assim, a sexualidade se dissolve na performance feminina do prazer e na visão de desempenho masculino; o prazer exposto, colocado sob holofotes, já não é prazer. A coação expositiva leva à alienação do próprio corpo, coisificado e transformado em objeto expositivo, que deve ser otimizado. Já não é possível morar nele, sendo necessário, então, expô-lo e, assim, explorá-lo.”
“[…] Quando o próprio mundo se transforma em um espaço de exposição, já não é possível o habitar, que cede lugar à propaganda, com o objetivo de incrementar o capital da atenção do público. Habitar significa originalmente ‘estar satisfeito, estar em paz, permanecer onde se está.”
“O valor expositivo depende sobretudo da bela aparência. Assim, a coação por exposição gera uma coação por beleza e por fitness; a ‘operação beleza’ tem como objetivo maximizar o valor expositivo. Nesse sentido, os paradigmas atuais não transmitem qualquer valor interior, mas medidas exteriores, às quais se procura corresponder, mesmo que às vezes seja necessário lançar mão de recursos violentos. O imperativo expositivo leva a uma absolutização do visível e do exterior. O invisível não existe, pois não possui valor expositivo algum, não chama atenção.”
“[…] O problemático não é o aumento das imagens em si, mas a coação icônica para tornar-se imagem.”
“Hoje, a comunicação visual se realiza como contágio, ab-reação ou reflexo. Falta-lhe qualquer reflexão estética. Sua estetização é, em última instância, anestésica. Por exemplo, para o julgamento de gostar não se faz necessário qualquer consideração mais vagarosa. As imagens preenchidas pelo valor expositivo não demonstram qualquer complexidade; são univocamente claras, i. é, pornográficas. Falta-lhes qualquer tipo de fragilidade que pudesse desencadear uma reflexão, um reconsiderar, um repensar.”
“Na sociedade da transparência, toda e qualquer distância se mostra como negatividade, devendo ser eliminada, pois impõe um empecilho ao aceleramento do circuito da comunicação e do capital.”
“A sociedade da transparência é inimiga do prazer. Dentro da economia do prazer humano, prazer e transparência não conseguem conviver; a transparência é estranha à economia libidinosa, pois é precisamente a negatividade do mistério, do véu e da ocultação que aguilhoa o desejo e intensifica o prazer”
“[…] Não é por acaso que a sociedade da transparência é hoje, igualmente, sociedade pornográfica.”
“[…] A transparência retira das coisas todo e qualquer atrativo, ‘proibindo à fantasia tecer suas possibilidades, para cuja perda não há realidade que possa nos compensar.”
“As coisas mais profundas guardam ódio da imagem e da comparação.” (Nietzsche)
“[…] É por isso que o sadista usa de todos os recursos possíveis para fazer com que a carne se manifeste, para fazer com que o corpo do outro assuma violentamente tais posturas e posicionamentos que escancarem sua obscenidade, i. é, manifestem sua perda irrecuperável da graça e do charme.” (Agamben)
“[…] Nas imagens pornográficas tudo está voltado e exposto para fora; a pornografia não tem interioridade, guarida, mistério.”
“[…] As imagens pornográficas, desculturalizadas, não apresentam nada que possa ser lido… Seu modo de atuação não é a leitura, mas a contaminação… Elas se esvaziam em espetáculo.”
“A memória de hoje se caracteriza por um amontoado de lixo e de dados em ‘lojas de sucata’ ou ‘armazéns’, entulhados de massas e de uma variedade de imagens possíveis e imagináveis, totalmente desorganizados, malconservados, cheios de símbolos desgastados.” (Virilio)
“[…] Por isso, falta-lhes história, não podendo recordar de si mesmas nem de si se esquecer.”
“[…] A atual crise epocal não é a aceleração, mas a dispersão e a dissociação temporal. Uma discronia temporal faz com o tempo gire como biruta, sem rumo, transformando-o em mera sequência da atualidade pontual, atomizada. Com isso o tempo se torna aditivo e esvaziado de toda e qualquer narratividade.”
“[…] E visto que não é a aceleração em si que representa o verdadeiro problema, sua solução não reside na desaceleração. A mera desaceleração não cria cadência, ritmo nem perfume, não impedindo a queda para dentro do vazio.”
“[…] Hoje, o mundo não é um teatro no qual são representadas e lidas ações e sentimentos, mas um mercado onde se expõem, vendem e consomem intimidades.”
“A tirania da intimidade psicologiza e personaliza tudo, e até mesmo a esfera política não escapa desse processo. Assim, os políticos não são avaliados por suas ações. Seu interesse está voltado para a pessoa, o que provoca neles coerção por encenação… No lugar do caráter público entra a publicização da pessoa; o público se transforma em espaço de exposição, afastando-se cada vez mais do espaço do agir comum.”
“[…] O sujeito narcísico não pode colocar um limite a si mesmo. Por isso ele não consegue fazer surgir uma imagem estável de si mesmo… O narcisista, tornado depressivo, engole a si mesmo em sua intimidade ilimitada. Não há qualquer vazio ou distância que consiga distanciar o narcisista de si mesmo.”
“Ex-por e pôr-se à mostra não servem primordialmente para conquistar o poder. O que se busca não é poder, mas atenção… Poder e atenção não se identificam simplesmente. Quem tem poder tem o outro, o que torna supérflua a busca de atenção.”
“[…] O que alimenta o exibicionismo e o voyeurismo é a rede enquanto panóptico digital. Nesse sentido, a sociedade de controle chega a sua consumação ali onde o sujeito dessa sociedade não se desnuda por coação externa, mas a partir de uma necessidade gerada por si mesmo; onde, portanto, o medo de renunciar à sua esfera privada e íntima dá lugar à necessidade de se expor à vista sem qualquer pudor.”
“[…] Transparência destrói a confiança… Por isso, a sociedade da transparência é uma sociedade da desconfiança e da suspeita, que, em virtude, do desaparecimento da confiança, agarra-se ao controle. A intensa exigência por transparência aponta precisamente para o fato de que o fundamento moral da sociedade se tornou frágil, que os valores morais da honestidade e sinceridade estão perdendo cada vez mais importância.”
“Na sociedade da transparência não se forma comunidade em sentido enfático. Surgem apenas certos ajuntamentos e agrupamentos de diversos indivíduos isolados singularmente, de egos que perseguem um interesse comum em torno de uma marca… O elemento social é degradado e operacionalizado como um elemento funcional do processo de produção, prestando-se sobretudo à otimização das relações de produção.”
“[…] Google e redes sociais, que se apresentam como espaços de liberdade, estão adotando cada vez mais formas panópticas. Hoje, a supervisão não se dá como agressão à liberdade. Ao contrário, as pessoas se expõem livremente ao olho panóptico.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário