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9 de fevereiro de 2025

Geração em geração

Hoje minha filha me questionou sobre quais lembranças eram mais marcantes do seu avô. Eu, surpreso pela pergunta, lhe disse que guardo dentro de mim muitas lembranças do meu pai. Aquilo que ele contou a mim e aos meus irmãos. Mais aquilo que vi, presenciei e participei enquanto ia crescendo lá no interior. Desde pequeno ele foi uma pessoa que trabalhou. Por necessidade de seus pais e esse foi um valor que ele nos passou. No campo colhendo algodão com minha avó, em farmácia lavando frascos de remédio, em relojoaria polindo lentes, como office boy andando por muitas ruas do centro de São Paulo a pé para economizar o dinheiro do ônibus ou lotação. Depois em açougue, profissão que ele já tinha quando eu nasci. Nada vem sem esforço, foi o que aprendi, e é preciso zelar pelo que conquistamos, pois há muito trabalho inserido ali. Como sou o filho mais velho, tive a chance de ficar bastante tempo com meu pai, pois minha mãe ficava em casa com meus dois irmãos menores. Ia com ele para o açougue após a escola, levando meu copo com leite e achocolatado e meu lanche preparados todos os dias por mamãe para que eu me alimentasse durante a tarde. Nessa época, uma ou duas vezes por semana, meu pai fechava as portas do açougue e lá íamos nós de fusca sem o banco do passageiro até algum sítio ouvindo música sertaneja raiz que tocava na emissora de rádio da cidade preferida do meu pai. Pra mim, um menino, era a maior diversão. Para o meu pai, trabalho. Teria que matar bois ou porcos, os quais ele avaliava e comprava por arrobas com os animais ainda vivos nos pastos ou nos chiqueiros. Entrava-se em um acordo sobre o valor a ser pago e era isso. Hora de botar a mão na massa. Meu pai matava os bichos, eles ajudavam a carregar a carne até o carro e dispensavam as vísceras para os urubus se fartarem. Quantas vezes vi meu pai, machado na mão, entrando em um chiqueiro - os porcos todos agitados pressentindo o que estava por acontecer - indo em direção do animal comprado que às vezes vinha querendo morder, e meu pai acertava o machado no meio do seu crânio e o derrubava ali mesmo, com uma, às vezes duas pancadas na sua cabeça. A água já estava fervendo, eles puxavam o bicho quase morto para fora do chiqueiro e o colocavam em cima de uma lona de plástico, onde era feita a sangria. A faca era inserida na parte de baixo de uma de suas patas dianteiras buscando e acertando o coração do animal. Uma corrente vermelha às vezes difícil de ver escorrer e se infiltrar na terra seca. Eu me impressionei nas primeiras vezes, depois me acostumei. Bem, mais ou menos, pois meu pai, muitas vezes, me mandava ir para outro lugar porque, segundo o que ele aprendeu, se alguém está com dó o bicho demora mais para morrer. Depois de tirar os pelos do couro do porco usando uma faca e a água fervente, abria-se a sua barriga, retirava-se a barrigada ou os miúdos como aprendi a chamá-los, e cerrava-se a coluna cervical ao meio para facilitar o transporte. O fusca vinha carregado, às vezes chovia e a estrada estava toda cheia de lama, encalhávamos, e era necessário chamar um sitiante que vinha com um trator nos ajudar a desencalhar. Era muita aventura para um menino da minha idade. Se eu sentia medo? Claro, disse para a minha filha, sentia que meu pai poderia errar a mira no momento da machadada e ser mordido pelo porco lutando pela sua sobrevivência. Cheguei a ver a perna de um rapaz que havia sido mordido, toda infeccionada. Mas acreditava e acredito em papai. Ele era e é minha grande referência. Uma inspiração. Se ele, sendo idoso hoje, conseguiria fazer isso, digo que não sei, que a gente vai perdendo um pouco as forças e a agilidade, mas que o que ele fez – mesmo que não seja mais uma prática comum de acontecer com as comodidades dos dias atuais (meus irmãos, que também têm açougues/mercearias, quando precisam de matéria-prima para trabalhar, simplesmente ligam para um frigorífico e eles entregam meio porco limpo e até desossado se assim os comerciantes quiserem) – fica assim guardado e um pouco vai sendo passado de geração em geração.

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