Hoje minha filha me questionou sobre quais
lembranças eram mais marcantes do seu avô. Eu, surpreso pela
pergunta, lhe disse que guardo dentro de mim muitas lembranças do meu
pai. Aquilo que ele contou a mim e aos meus irmãos. Mais aquilo que
vi, presenciei e participei enquanto ia crescendo lá no interior.
Desde pequeno ele foi uma pessoa que trabalhou. Por necessidade de
seus pais e esse foi um valor que ele nos passou. No campo colhendo
algodão com minha avó, em farmácia lavando frascos de remédio, em
relojoaria polindo lentes, como office boy andando por muitas ruas do
centro de São Paulo a pé para economizar o dinheiro do ônibus ou lotação. Depois em açougue, profissão que ele já tinha quando
eu nasci. Nada vem sem esforço, foi o que aprendi, e é preciso
zelar pelo que conquistamos, pois há muito trabalho inserido ali.
Como sou o filho mais velho, tive a chance de ficar bastante tempo
com meu pai, pois minha mãe ficava em casa com meus dois irmãos
menores. Ia com ele para o açougue após a escola, levando meu copo
com leite e achocolatado e meu lanche preparados todos os
dias por mamãe para que eu me alimentasse durante a tarde. Nessa época, uma ou
duas vezes por semana, meu pai fechava as portas do açougue e lá
íamos nós de fusca sem o banco do passageiro até algum sítio
ouvindo música sertaneja raiz que tocava na emissora de rádio da
cidade preferida do meu pai. Pra mim, um menino, era a maior
diversão. Para o meu pai, trabalho. Teria que matar bois ou porcos,
os quais ele avaliava e comprava por arrobas com os animais ainda
vivos nos pastos ou nos chiqueiros. Entrava-se em um acordo sobre o valor a ser pago e era isso. Hora
de botar a mão na massa. Meu pai matava os bichos, eles ajudavam a
carregar a carne até o carro e dispensavam as vísceras para os urubus se fartarem. Quantas vezes vi meu pai, machado na mão,
entrando em um chiqueiro - os porcos todos agitados pressentindo o que
estava por acontecer - indo em direção do animal comprado que às
vezes vinha querendo morder, e meu pai acertava o machado no meio do
seu crânio e o derrubava ali mesmo, com uma, às vezes duas pancadas
na sua cabeça. A água já estava fervendo, eles puxavam o
bicho quase morto para fora do chiqueiro e o colocavam em cima de uma
lona de plástico, onde era feita a sangria. A faca era inserida na
parte de baixo de uma de suas patas dianteiras buscando e acertando o
coração do animal. Uma corrente vermelha
às vezes difícil de ver escorrer e se infiltrar na terra seca. Eu me impressionei nas primeiras vezes, depois me acostumei.
Bem, mais ou menos, pois meu pai, muitas vezes, me mandava ir para
outro lugar porque, segundo o que ele aprendeu, se alguém está com
dó o bicho demora mais para morrer. Depois de tirar os pelos do
couro do porco usando uma faca e a água fervente, abria-se a sua barriga,
retirava-se a barrigada ou os miúdos como aprendi a chamá-los, e
cerrava-se a coluna cervical ao meio para facilitar o transporte. O fusca vinha carregado, às vezes chovia e a estrada
estava toda cheia de lama, encalhávamos, e era necessário chamar um
sitiante que vinha com um trator nos ajudar a desencalhar. Era muita
aventura para um menino da minha idade. Se eu sentia medo? Claro,
disse para a minha filha, sentia que meu pai poderia errar a mira no momento da
machadada e ser mordido pelo porco lutando pela sua sobrevivência. Cheguei a ver a perna de um rapaz
que havia sido mordido, toda infeccionada. Mas acreditava e acredito
em papai. Ele era e é minha grande referência. Uma inspiração. Se
ele, sendo idoso hoje, conseguiria fazer isso, digo que não sei, que
a gente vai perdendo um pouco as forças e a agilidade, mas que o que
ele fez – mesmo que não seja mais uma prática comum de acontecer
com as comodidades dos dias atuais (meus irmãos, que também têm
açougues/mercearias, quando precisam de matéria-prima para
trabalhar, simplesmente ligam para um frigorífico e eles entregam
meio porco limpo e até desossado se assim os comerciantes quiserem)
– fica assim guardado e um pouco vai sendo passado de geração em geração.