-
O
que você acha que está acontecendo?
-
Como
assim?
-
Com o caos… Como
ele pode ter assumido essa aparência de perfeição?
- Ah?!
-
Tenho
achado que algumas
pessoas acreditam que a vida está explicada,
pronta
demais. Muitos
de nós já não
consideram
a
questão da
margem de erro, parecem tão absolutos em suas conclusões… Será
que
as
probabilidades, as
aleatoriedades passaram
a ser tão
inquestionáveis
para toda essa gente?
-
Olha, eu não sei… Talvez as
fontes
de nossas informações não tenham
mudado tanto quanto a gente imagina. Algumas
pessoas ainda mantém o controle. Talvez
nos
falte entender
um pouco
mais sobre variáveis, contexto. Aprender,
inclusive,
separar informação de conhecimento.
- Por
falar nisso, eu mesma me esqueci de falar sobre qual contexto estou
me referindo.
- Esqueceu
mesmo.
-
Quero
te contar uma breve história para que você se
localize
melhor sobre o que quero dizer, ok?
- Vá em
frente!
-
Há
um tempo
conversei com uma senhora em
um supermercado e
ela me disse algo que me deixou no mínimo intrigada... Ela disse que
a gente deve ter muito cuidado, pois
estamos atrapalhando os planos de deus em nosso planeta. Afirmou que
ele já havia manifestado suas intenções, revelando os seus
mandamentos aos
homens santos que que
acabaram por
registrá-los
na bíblia.
- Nossa!
-
Ela fixou bem
seus
olhos em mim e disse que não
demora as profecias logo se concretizarão e não vai adiantar rezar,
implorar
pela bondade eterna, pois
nenhum milagre será realizado para nos salvar. O juízo final já
foi anunciado e, como não demos o devido valor a essa verdade,
exagerando
no livre arbítrio, não
temos nem sequer do que nos queixar.
-
Você
ficou com medo do que
ela
disse?
- Não,
não fiquei com medo. Fiquei pensando sobre a forma como ela
anunciava todas essas ideias, sugestões, impressões, sem qualquer
embasamento além do que ela ouviu ao longo de sua vida. Digo isso,
pois perguntei se ela ao menos tinha lido a bíblia alguma vez e ela
me disse que não precisava, pois “existem pessoas que são criadas
para interpretá-la por nós”.
-
Estranho mesmo…
Isso
parece fatalismo,
sem falar no determinismo que essa senhora acredita
imperar
por aqui.
- É, se
fizermos esse tipo de declaração em qualquer outro contexto que não
o religioso – que consideram algo sagrado – seríamos tidos como
malucos, não?
-
Sem dúvida. O problema é que existe essa ideia tirana
de que fé é fé, não
se discute,
e que
a
razão não deve ser tão
pretensiosa a ponto de ser usada
para pensá-la. Santo Agostinho chegou a registrar esse pensamento de
que a fé é inimiga da razão.
-
Ela disse tudo isso como se fosse algo
que não admite nenhum contraponto,
mas eu a questionei sobre a questão das evidências, dos fatos e ela
nem aí. Estava meio que blindada, sabe?
Só fez a sua
ameça,
como se os indivíduos
da sua geração não tivessem
responsabilidade alguma. Disse que vinha
fazendo a sua parte e estava certa de que sua alma iria direto para o
céu, nem passaria pelo purgatório.
- Alma?!
Céu?! Purgatório?!
- Sim,
falou sobre essas ideias repetidas como se falasse de átomos,
moléculas, fósseis, heliocentrismo...
- Caramba!
Mas, o que foi que essa conversa lhe despertou, afinal? Por que você
falou de caos aparecendo como perfeição?
-
Fiquei pensando… Quantas pessoas não são sugestionadas,
amedrontadas por pais, professores, padres, pastores, políticos que
vivem reforçando essas ilusões todos os dias por todos os meios
possíveis? Já
reparou que quase todas as novelas da tevê sempre tem religião
no meio?
Sem
contar os canais que são propriedade de religiosos
ou
pessoas
com
muito poder, além dos políticos
que usam deus como slogan de campanha e governo. “Por Deus, pela
Pátria e pela Família.”
-
A
maioria das pessoas nem sequer pensa no direito de questionar a
religião que foram obrigadas a seguir. Triste e desesperador para
uma vida coletiva
onde
o que deveria prevalecer seria a
cidadania e
não a culpa. Fica difícil crescer de maneira
saudável
num meio assim.
-
Como
um hábito que venho cultivando, perguntei
se ela acreditava na Medusa ou no deus Sol… “Imagina,
isso é
loucura, minha
filha!”
-
Claro!
- Enfim, o
que queria dizer é que essa ameaça de fim de mundo me fez pensar em
como somos afetados pela nossa velha mania de tirar/impor conclusões,
recebendo as impressões com todas as nossas limitações sensoriais,
imaginando padrões que muitas vezes nem existem e achando que
estamos prontos para julgar acertadamente qualquer acontecimento.
- Olha,
você não está querendo dizer que deixou de tentar, não é mesmo?
- Não, de
forma alguma. Não deixei de lado a possibilidade de aperfeiçoar o
que me veio por sorte quando, dentre todos os possíveis, fui eu que
nasci. Só acho que alguma coisa ficou mais clara pra mim, entende?
Talvez seja isso o que estou chamando de caos.
- Você
acredita em dom?
-
Não existe
dom nenhum.
O que existe são chances, oportunidades que alguns têm
para testar seus potenciais e habilidades, enquanto outros –
aqueles que normalmente são
chamamos de fracassados – sequer
acabam tendo ou
explorando
essas oportunidades. Acho que todos nós morremos sem saber um monte
de coisas que poderíamos fazer. Já
ouviu falar da hipótese de que precisamos de no mínimo 10 anos para
começar a entender algo metodicamente?
- Já, faz
muito sentido.. Mas, que legal essa sua ideia! Isso me fez lembrar de
quantas besteiras já fiz e que só agora comecei a entendê-las de
uma forma mais séria. Achava que tinha feito a escolha certa, me
justifiquei e segui em frente, mas…
- Mas
agora você agiria de outra forma.
-
Isso! Talvez
porque agora
eu sei que temos
quase
nenhum
controle, nem
sobre o
passado nem
sobre
o futuro,
apesar da ilusão que a gente mantém
no presente.
-
Niilismo?
- O
próprio conceito já carrega uma grande soma de pretensão quando
queremos que os pensamentos e as ações de algumas pessoas, num
determinado momento, se encaixe em nossa definição de niilismo.
- Puxa!
Nunca tinha pensado por essa linha de raciocínio.
-
Certa vez comentei que uma música do Agent Orange falava
de pertencimento como sentido de cuidado e minha amiga
achou estranho pois, para ela, pertencer – naquela circunstância –
parecia se referir à posse, ser controlado por
alguém.
- Nossa! E
aí, vocês chegaram a algum consenso sobre esse sentido?
-
De
uma certa forma, sim.
Expliquei
a minha posição e ela explicou a dela
e
ambos ouvimos o outro, não só defendemos uma ideia. Ouvimos
sinceramente.
- É
difícil…
- O quê?
- Criar ou
corresponder às expectativas, se muitas vezes só temos um curto
tempo e os valores são quase sempre pensados como padrões
dualistas: certo e errado, bem e mal, moral e imoral, deus e o diabo.
-
É… Chega a ser um teste, se acreditarmos em destino.
- Destino?
-
Sequência de eventos, sensações, raciocínios, potencialidades que
vamos incluindo em nossas existências...
-
Ah, entendi.
Então, como eu ia dizendo, nós somos tudo menos esses
seres
imaginados,
criados e designados
para o sucesso ou
para a danação que
querem nos fazer crer.
-
Concordo. A gente, independente da cultura que nos condiciona, acaba
esquecendo que somos parte de outro processo correlacionado, se
pensarmos em termos de espécie. O que você acha que acontece quando
a gente morre?
- A gente
morre. Acaba nossa existência. Fim para a gente! Nossa matéria se
decompõe e continua a fazer parte da vida.
- Então,
será só isso?! Nascemos, aprendemos, tentamos ver se o que
aprendemos tem algum fundamento, testamos nossos limites e depois
morremos?
- Na minha
visão, sim. Mas você se esqueceu de que essa procura alucinada por
significados para quase todos as nossas vivências é um aspecto
muito importante para a nossa sobrevivência que alguns nem sequer
chegam a considerar.
-
E como tentamos achar
esses significados,
hein!
O estranho é que eles
são culturais, a gente se apropria, mixa e usa – meio que tentando
encaixar os fatos neles.
- Ah! Você
tá falando das trocas culturais?
-
Sim.
Nossa originalidade está em selecionar
e juntar
outros jeitos de parecer
e ser
e seguir vivendo, escolhendo dentro de um leque muitas vezes tido
como o jeito correto
de se viver. Estudar, casar, ter
ou não ter filhos, comemorar
os feriados, participar ou não de algumas festas populares. Para
nossos antepassados a busca pela sobrevivência tornava a vida mais
desafiadora, porque
hoje nos acomodamos com algumas coisas que supostamente nos
confortam... Às vezes surgem alguns que vão um pouco além, mas
esses são a exceção não a regra. Sem
contar que muitas dessas escolhas nem é a gente que faz, às vezes
simplesmente
vão acontecendo
em nossas vidas e quando vamos ver, já foram
feitas. Fomos
nós
os escolhidos!
- Então,
a gente…
- A gente
tem que seguir. Ganhamos na “loteria” por ter nascido e temos que
viver. A vida segue com ou sem a gente, mas podemos fazer algo… É
inegável que, além de sermos alterados, também alteramos os meios.
Deixamos nossas marcas, sobretudo para que aqueles e aquelas que nos
são mais próximos.
-
Sabe, essa nossa conversa me lembrou de um filme:
Ponto
de mutação.
- Sei,
muito legal esse filme. Já me disseram que ele é muito monótono,
mas eu achei massa, pois os personagens estão em crise, debatem
assuntos vitais e também por quebrar com alguns padrões do cinema
convencional.
- Onde
será que começa esse ponto de mutação?
- Já
começou há muito tempo, nós somos consequência desse processo de
mutação. Ou você acha que não somos fruto do processo de seleção
natural? Já percebeu as “compensações” que a genética faz em
nossas vidas, por exemplo, quando filhos de pais com uma altura
considerada acima da média nascem dentro do tamanho meio que padrão
para a nossa espécie?
- Da mesma
forma que pessoas que nascem sem um ou mais sentidos ou os perdem em
decorrência de alguma doença ou acidente, acabam desenvolvendo
outro ou outros para “compensar” e se adaptar. Acho que o nome
desse fenômeno é regressão à media, não é?
- Sim.
Isso é fantástico e considerado mais um milagre para alguns. Assim
como alguns apostadores na Idade Média que, quando ganhavam,
agradeciam a deus por tê-los abençoado.
- E quando
perdiam, achavam que estavam sendo castigados. Que loucura! - como
diria Woody Allen... Olha, que tal tomarmos um café e continuarmos
esse papo depois, hein?
- Tudo
bem.
- Tenho
que voltar ao meu trabalho. Então, estamos certos? Será que estamos
prontos? Conseguiremos levar nossa vida adiante de um jeito diferente
depois dessa pandemia?
- Preciso
ir. Tenho que ajudar a preparar o discurso do presidente para ver se
acabamos de uma vez por todas com essa estupidez de isolamento
social. Afinal, como sobreviveremos se não tivermos dinheiro, não é
mesmo?
(Algumas
referências: Richard Dawkins – Deus um delírio, Leonard Mlodinow
– O andar do bêbado, Bernt Amadeus Capra – Ponto de mutação –
filme baseado no conto de Fritjof Capra).