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3 de março de 2013

O reflexo

Eu?! Ah, não diga que você não sabe. Chega a ser até estranho que você não tenha ouvido falar de mim. Todo mundo me conhece e me admira por aqui. Eu sou uma pessoa super do bem. Sempre muito descontraída. Sempre, sempre de bem com a vida. Eu não tenho preconceitos. Minha cabeça é bem aberta. Tão aberta que minhas ideias insistem em escapulir quando mais preciso reuni-las. Deve ser por isso que a galera vive me dizendo que eu falo as mesmas coisas, conto as mesmas histórias toda vez que saímos. Ora, me poupe! Eu sou uma pessoa amiga. Super receptiva. O problema – disse minha analista – é que eu falo, falo, falo tanto que ninguém consegue falar comigo. Mas eu nem lhes dou ouvidos. Eu sou bonita, jovem, inteligente. Sensível, caridosa e muito, muito criativa. Vivo sempre sorrindo, mesmo quando me esqueço de tomar meus antidepressivos. Eu gosto de sair, de dançar, de curtir a vida. Medo?! Eu não tenho medo, afinal, não é a experiência a mola propulsora diante dos desafios? Meu Deus, quem disse isso, mesmo? Bom, tanto faz. Adoro conhecer pessoas novas, lugares novos. Adoro viajar... Você está me ouvindo? Eu... Eu faço muitas coisas. Olho a empregada cozinhando, lavando, passando. Deixando tudo fora de mim perfeitamente organizado. Limpo. Vou às compras e trago sempre alguma coisa, mesmo que não vá usar nem um único dia. É divertido. Eu começo a ler um livro, me inscrevo em vários cursos, mudo de academia. Depois descubro que não era bem isso o que eu queria. Largo tudo. Aliás, acho que nunca terminei nada do que escolhi pra mim. De qualquer forma, me sinto bem assim. Sabe por quê? Porque sempre vou ter o que fazer quando me sentir deprimida. E, além do mais, todo começo me dá uma sensação agradável, aquele friozinho na barriga. Que logo passa, mas que é sempre bem vindo. Minha analista disse que tudo isso não passa de medo de me envolver por inteira. Disse que preciso parar de me emprestar e me entregar pra valer se quiser saborear de verdade os sabores da vida. Disse também – veja você o cúmulo da antipatia – que eu preciso deixar de ser tão impulsiva, mas eu não dou a mínima para o que ela diz ou deixa de dizer. Sou livre, estou pagando e não dependo de ninguém para ser bem quista! Sabe, eu não gosto desse tipo de conversa. Fico confusa, triste. Acho que preciso dar um tempo com a terapia também. Ora, só me faltava essa! Eu gosto mesmo é de fazer o que me dá vontade, sempre que me dá na telha, aconteça o que acontecer. Mesmo que depois eu me arrependa ou não me lembre de nada do que fiz. Assim, fica até mais fácil. Na verdade... Hei, espere um pouco! Você já vai?! Ainda tenho tanto para te contar! – acrescentou, mirando-se no espelho, alguns minutos antes de seus remédios reagirem.

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