Toda
vez que algo fugia à previsibilidade – e esta era a regra, não a
exceção, como muitos acreditavam – instalava-se dentro daquela
sociedade um clima de idolatria e pouquíssima solidariedade. As
ideias, desacostumadas àquelas reflexões que pedem um pouco mais de
profundidade, tinham, assim, de se virarem para locais, pessoas e
situações até então ignoradas. Inseguras, confusas, sem nada
daquilo que poderia torná-las ao menos um pouco confiantes para
tentar uma sugestão que parecesse razoável, apressavam-se em
associar quaisquer causas a quaisquer efeitos, sem, no entanto,
considerarem as peças de suas próprias engrenagens.
–
Achamos os culpados – era o que se comentava nos poucos momentos em
que as pessoas realmente se juntavam para ouvirem e escrutinarem
outras possibilidades. – Agora, só precisamos achar um meio de
reformar nosso sistema para logo retornarmos à nossa mais que
merecida normalidade. Em rede nacional, aqueles que eram vistos como
os únicos capazes de debaterem e indicarem as saídas para aquela
calamidade, batiam com as mãos sobre o aço como meio de se livrarem
dos maus presságios.
–
Por pouco estes imprestáveis não nos levaram à ruína! Imaginem
uma economia que não esteja acima dos que por ela trabalham!!! Seria
um sistema que não demonstraria a menor finalidade! Que os novos
técnicos encontrem logo este defeito, pois alguns lunáticos já
começaram a apontar novos responsáveis por toda esta algazarra.
Referem-se a si mesmos como parte do problema, pois – segundo eles
– somos nós mesmos, os aqui vivem ou viveram, que escolheram,
escolhem, fizeram e ainda fazem este sistema deixar de ser prático.
–
Ora, o que é que eles sabem? Na justa divisão das tarefas, não
elegemos estes técnicos para fazerem os ajustes, mantendo nosso
sistema em seu mais perfeito estado?! Que eles façam, então, a sua
parte e nos deixem em paz com as nossas vidas diárias! Afinal, já
temos nossas preocupações e, se os escolhemos dentre as filas
imensas de candidatos para estes cargos, porque não cumprem com o
combinado?! Não demora, vamos ver manifestações e greves por todos
os lados. E, desse jeito, todos teremos de nos ocupar da política
(vejam só que catástrofe!) como meio de melhor nos organizarmos...
–
Às urnas, meu amigo, minha amiga, lutemos para que ele não acabe
por conta destes técnicos irresponsáveis! Escolhamos outros mais
bem preparados para fazerem desta comunidade o que ela sempre foi:
uma comunidade sem conflitos, onde cada um ocupa a posição que
merece e desfruta das riquezas de acordo com suas qualidades
naturais!!!
E
era assim que se desenrolavam os preparativos para o que batizaram de
“a festa da democracia popular”, festa esta que chegava ao seu
ápice quando os dois mais celebrados ora acusavam-se pela usurpação
dos recursos públicos em suas gestões, ora se vangloriavam por
terem feito de tudo em “seus governos”, conseguindo isto,
batalhando por aquilo, ampliando o que se convencionou chamar de
benefícios para a massa esmagada, comovendo os cidadãos e cidadãs
com sua retórica que versava sobre quase tudo, menos sobre propostas
e metas, compromissos, afinal, que deveriam ser não só expostos,
mas debatidos constantemente, em plebiscitos, inclusive com aqueles
que, habituados à condição de mantenedores deste sistema em que
poucos mandavam, muitos obedeciam, repleto das mais descabidas
desigualdades, ainda assim o aceitavam como justo, pois a maioria, de
tempos em tempos, assim o legitimava. Esperando que os novos
carrascos fossem ao menos piedosos quando tiverem de bater ou matar
para que a ordem e o progresso continuem sendo as velhas metas que
todas as nações ainda hão de alcançar. Independente do suor, das
lágrimas, das guerras, das sanidades ou dos planetas que estas
ditaduras comandadas por estes discípulos de Narciso ainda possam
vir a precisar.