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27 de julho de 2014

Alfaiataria

Pessoas e culturas escondidas
Sob pedras esculpidas
Reinos, poses, traças que não vencem os tecidos
Velas, candelabros e lamparinas
Telas cheias de retratos que a realidade desmistificaria
Opulência dos castelos, igrejas e portões que se abriam para que os restos dos banquetes consolassem às famílias que na miséria toda a riqueza produzia
Estruturas que as colunas, as peças e as cantigas se encarregavam de adorná-las como muito bem lhes convinha
Carruagens, bondes, volume, cores e intensidade imaginativa

Quero, enfim, coser sob os assoalhos destas estrebarias
Vasculhar as frestas que ficaram esquecidas
Encontrar num fundo falso de uma gaveta soterrada da cozinha
Algum indício de que alguém guardava ali o seu penico preferido

Janelas, vitrais, orquestras e partituras que excitam a tradição moralista
Jarros, castiçais e porcelanas polidas por uma gama de criadas arredias
Pinos, pregos, ferrolhos, madeira e dobradiças
Luzes, trevas, cabaças e cantis
Armazenando líquens para que as estátuas fossem facilmente reconhecidas
Escadas, corrimões, degraus e renovadas tapeçarias
Sinos e sinetas, alarmes e campainhas, mensageiros a serviço das damas e dos cavalheiros que desde os seios de suas amas eram prometidos
Devoção às chamadas dos teatros onde as vedetes contraíam e repassavam sua sífilis

Espaços em que os assentos, dos desprazeres da luxúria, muito conheciam
Árias, sonetos, tragédias e galanterias para que as perucas, as braçadeiras e os charutos inspirassem uma sátira aos que nas fogueiras sempre acesas ardiam
Torres, calabouços e masmorras que também cumpriam seus papéis na arte de manter a plebe submissa
Impostos sobre as pontes, os moinhos e a resistência que a cavalaria jamais se esquece de relembrar com toda a fúria de suas hipocrisias

Observando a respiração
Retirando as medidas
Imbuído em nuances
Que a alma humana talha e molda à sua revelia
Agulhas, linhas, texturas e misturas para as cortes em que os bobos e os perfumistas entretinham
Os quais, apesar dos afazeres necessários à cortesia,
Banham-se com as águas de uma corrente sulfurina
A lenha, as chamas e as novas guilhotinas... todo o arsenal que auxilia nas execuções como ainda ordenam os decretos emitidos

Os troncos, os cumes, as caçadas e escaladas que ocorrem no interior das montanhas submarinas
Os êxtases, as peles e as fibras que permitem aos autos-de-fé dar vazão às suas reprimidas energias
Enchendo-os tanto de estimas que somente um escudo ou brasão é capaz de conferir-lhes honrarias
Névoa no parapeito do chafariz da nossa vida

Semáforo do globo ocular que catarata desenvolvia
Veias que saltam e assaltam cada corpo
Mesmo que um significado particular venha a ser acrescido
Às águas gélidas de um verão enfurecido
Sanatórios e suicídios
A vivência e a filosofia que não nos contam nem se preocupam em inserir em seus livros
Encobertos pelas folhas que também marcham, murcham e são esmagadas sob os pés dos passantes de outros tempos findos
Cavaletes e bastões, tesouras, fitas, pincéis e obstinações expressas em folhas ritualísticas

Há, assim, folia, algazarra, músicos tocando para que os ritmos ajudem aflorar a perfídia
Que o sol e a lua, as estrelas e os meteoritos não se cansam de observar
Nas galerias de uma múltipla caverna onde o que predomina são as sombras das estalactites
Precipícios de uma fauna e de uma flora em que as guerras químicas só viriam a acrescentar mais e mais ogivas

Botões a serem apertados
Toda vez que a abundância aparecer despida
E os machões se sentirem tocados
Pela gana de manterem seus impérios de ternos cortados e passados
No vapor destas investidas de todos e todas
Que acreditam que precisam estar impecáveis
Quando seus tronos receberem outros cortes
Que até agora os costumes ainda não instituíram.

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