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20 de julho de 2011

Mercadoria

Dentro do carro-forte os corações precisam ser fortes. Pois não são os braços, as pernas ou as mãos que a transportam. São eles que primeiro se identificam. Acomodam-na. Encaminham-na. Reabastecem os pontos onde se paga mais para encontrá-la disponível. Onde e quando ela se fizer necessária para adquirirem algum desses tickets. Para o embarque. No carro de passeio a estrutura deve fazer algum sentido. Ninguém quer perder o bom-senso. Alguém tem que aproveitar a oportunidade. Não pretendem desatar o nó. Se afastarem do redemoinho que se cria toda vez que recebem novos incentivos. Administrativos. Distribuindo as moedas que lhes sobram de troco para se livrarem rápido de todas essas criaturas abomináveis que lhes inspiram dó. Pena. Algum curto-circuito dentro dessa invenção infalível. No furgão da empresa as conversas devem girar em torno de grandes compromissos. Aventuras. Recompensas. Um final de semana inesquecível. Nessa euforia. Quem tem espaço. Para se lembrar. Que só trabalha para conseguir isto. E que o dinheiro não trabalha, mas já está cansado de voltar dobrado para as mesmas mãos que projetam e testam a eficácia desses benefícios? Dentro dos ônibus as máscaras se olham, mas não se reconhecem. Afinal, ninguém tem nada a ver com isso. Financiam para se verem logo livres. Não querem correr nenhum risco. Sobretudo o de não fazerem de seus filhos seres humanos persistentes. Experientes. Dignos. Fora dos carros. Andando de bicicleta ou de skate. Surfando, nadando, mergulhando. Jogando cartas, futebol ou qualquer outro jogo mega criativo. Pintando, encenando, tocando. Discotecando, esculpindo. Escrevendo para si mesmo ou para qualquer site, jornal ou revista. Se divertindo também se pode conviver. Compartilhar da justiça exercida por todos esses corações blindados. Solidários com a miséria coletiva. Aqui no chão há tantos que não saem, nem escoltados, de suas moradias. Proprietários ou não das escrituras destes esconderijos. Esperando que os significados. Para suas vidas. Sejam remetidos por algum disk-entrega. Com ou sem taxa de serviço. Temendo que outros corações os ataquem em algum trecho do caminho. Levando todas as suas coisas. Para serem trocadas por drogas e alguns poucos alimentos para os nossos filhos. E toda a blindagem ser requisitada como uma questão de princípio. No interior. No litoral. Nas capitais de cada instituição que opera com a técnica da instrumentalização dos sentidos. Mania civilizada de querer se fazer um agrado. Engordando o salário. Pagando para saírem realizados. Pertencendo. Quase amando. Deixando. As relações mais importantes de lado para parecerem mais bonitos. Inteligentes. Amigos. Dentro dos espetáculos há vários corações blindados. Todos loucos para serem compreendidos. Respeitados. Correspondidos. Dentro desses corações há ainda outros corações. Só que esses foram tantas vezes negligenciados que já não encontram forças para se fazerem ouvidos. Às vezes eles até choram, mas suas lágrimas são vistas apenas como mais uma porção de alívio. Semimortos, continuam dando corda a essa engrenagem cada vez mais otimista. Vivendo de ilusões que se dilatam quanto mais estiverem engajados. Treinados. Instruídos. Fazendo, com todo o carisma, os seus serviços. Oferecendo, assim, suas contrapartidas pela distribuição das riquezas e das posições se manter tão arredia a se expandir para toda a coletividade. Superando a dicotomia. Que algumas vezes os faz sentir e não reconhecer seus próprios batimentos cardíacos. Praticando seus assassinatos e dependendo sempre dos veredictos de juízes, advogados, psicólogos, psiquiatras, farmacêuticos, políticos, enfim, dos outros profissionais que os ajudam a comprovar seus papéis de vítimas dessa fatalidade que nem sempre dá sinal de que almeja ultrapassar nossas vidas. Inocentes condutores que recebem e oferecem suborno para trafegarem sempre mais rápido e com toda a adrenalina possível. Nessa rodovia em que a posse de tal mercadoria e de outras tantas armas os permite chegar sãos e salvos aos seus destinos. Prontos para desfrutarem de uma paisagem paradisíaca. Propagada como último recurso para agraciarem todos os seus sacrifícios. Enriquecendo, desse modo, seus espíritos.

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