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21 de maio de 2025

Byung-Chul Han - "O desaparecimento dos rituais"

Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade.”


[…] A percepção simbólica é constitutiva dos rituais. O símbolo significa originalmente o sinal de reconhecimento entre amizades hóspedes… O símbolo serve, assim, ao reconhecimento.


[…] A percepção simbólica, na condição de reconhecimento, percebe o permanente.”


[…] O mundo hoje está muito desprovido de simbólico. Dados e informações não possuem força simbólica. Assim, não admite reconhecimento… A experiência da duração tem diminuído. E a contingência aumenta radicalmente.”


Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável… Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa.”


[…] Pois é bom quando o tempo que passa não nos pareça algo que nos gasta e destrói, como a um punhado de areia, mas como algo que nos realiza. É bom que o tempo seja uma construção.” [Antoine de Saint-Exupéry]


[…] Ao tempo falta hoje a estrutura firme. Ele não é uma casa, mas um fluxo volúvel. Desintegra-se em mera sucessão de presentes pontuais. Ele se esvai. Nada lhe dá uma parada. O tempo que se esvai não é habitável.


[…] Pela sua mesmidade, sua repetição, os rituais estabilizam a vida. Tornam a vida suportável.”


São formas rituais, como a polidez, que tornam possível não apenas um belo trato interpessoal, como também um belo trato, conservativo, com as coisas. No âmbito ritual, as coisas não são consumidas ou exauridas, mas usadas. De modo que podem também envelhecer.”


Hoje não consumimos meramente as coisas, mas também as emoções com as quais são carregadas… A emocionalização e a estetização, que a acompanha, da mercadoria são regidas pela coação de produção. Têm que potencializar o consumo e a produção. Com isso, o estético fica colonizado pelo econômico.”


As emoções são mais fugazes do que as coisas. Não dão, assim, estabilidade à vida. Ao consumir emoção, além disso, não é com coisas que a gente se relaciona, mas consigo mesmo. Busca-se autenticidade emocional. O consumo de emoção intensifica, com isso, a relação consigo narcísica.”


Os valores também servem hoje como objetos de consumo individual. Tornaram-se eles mesmos mercadoria. Valores como justiça, humanidade ou sustentabilidade são explorados emocionalmente.”


[…] Valores morais são consumidos como características distintivas. São contabilizados na conta do ego, elevando o valor do ego. Aumentam a autoestima narcísica.”


[…] Rituais são também uma práxis simbólica ao reunirem as pessoas produzindo aliança, uma totalidade, uma comunidade.”


Um dos problemas mais sérios de nossa época é o desaparecimento da união por símbolos comuns… ‘Ritual’ se tornou uma palavra escabrosa… somos testemunhas de uma revolta geral contra todo tipo de formalismo, contra a ‘forma’ em geral.” [Mary Douglas]


[…] Formas objetivas são condenadas em prol de estados subjetivos. Rituais não se prestam à interioridade narcísica. A libido do eu não consegue se acoplar neles… Rituais produzem uma distância de si, uma transcendência de si. Eles despsicologizam, desinteriorizam seus atores.”


A percepção simbólica desaparece hoje cada vez mais em prol da percepção serial, incapaz da experiência da duração… Apressa-se de uma informação à outra, de uma vivência à outra, de uma sensação à outra, sem terminar. Certamente, é por isso que as séries são tão populares hoje, pois correspondem ao hábito da percepção serial”


O regime neoliberal acelera a percepção serial, aumenta o hábito serial. Elimina deliberadamente a duração para obter mais consumo… A vida se torna, com isso, mais contingente, mais efêmera, e instável.”


O transtorno de déficit de atenção é resultado de um recrudescimento patológico da experiência serial. A experiência nunca repousa. Desaprendeu a permanecer.”


[…] A atenção é, segundo Malebranche, a reza natural da alma. Hoje, a alma não reza. Ela se produz continuamente.”


Hoje, muitas formas de repetição são inibidas, como a memorização, por reprimirem a criatividade, a inovação etc… Apenas a repetição alcança manifestamente o coração.”


A repetição é a característica essencial do ritual. Ele se distingue da rotina pela sua capacidade de produzir uma intensidade.”


[…] Quem, ao contrário, espera sempre algo novo, excitante, não vê o que já está ali. O sentido, ou seja, o caminho, é repetível.”


[…] Aos dispositivos neoliberais como autenticidade, inovação e criatividade é inerente uma coação permanente ao novo. Eles produzem, ao fim e ao cabo, apenas variações do igual.”


O novo cai logo na rotina. É mercadoria que se gasta e provoca novamente a necessidade de algo novo A coação de ter que rejeitar o rotineiro produz mais rotina… Para escapar da rotina, do vazio, consumimos ainda mais coisas novas, novos estímulos e vivências.”


Rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum… Sem ressonância, a gente ecoa a si mesmo e se isola para si.”


[…] A comunidade digital consiste de câmeras de eco nas quais antes do que nada se ouve apenas a si mesmo falando. Likes, Friends e Followers não formam corpos de ressonância. Apenas aprofundam o eco de si mesmo.”


O regime neoliberal isola as pessoas. Ao mesmo tempo, invoca-se a empatia. A sociedade ritual não necessita de empatia, pois é um corpo de ressonância… A empatia é utilizada como meio de produção eficiente. Serve para influenciar e conduzir emotivamente as pessoas.”


[…] A gestão emocional se mostra aqui como ainda mais eficaz do que a gestão racional… A política psíquica neoliberal trabalha na obtenção de emoções positivas e na sua exploração.”


A comunicação digital se desenvolve hoje cada vez mais em uma comunicação sem comunidade, na medida em que cada um é isolado se tornando produtor de si mesmo.”


Produzir vem do verbo latino producere, que significa mostrar ou tornar visível. A palavra em francês produire ainda tem o sentido de exibir. Se produire, se produzir, significa se pôr em cena.


[…] Hoje, nos produzimos em geral e compulsivamente, e as mídias sociais são um exemplo disso. O social está completamente subordinado à produção de si. Cada um se produz com o intuito de gerar mais atenção. A coação da autoprodução provoca uma crise da comunidade.”


A assim chamada Community’, invocada em tudo que é parte hoje, é apenas um vestígio, uma forma de mercadoria e de consumo, da comunidade. Falta-lhe por completo a coesão simbólica.”


[…] Onde cessam de existir rituais na condição de dispositivos de proteção, a vida está desprotegida por completo. A coação de produção não poderá lidar com essa desproteção e desabrigo transcendentais. Ela a intensifica, ao fim e ao cabo.


A sociedade da autenticidade é uma sociedade da performance. Cada um se performa. Cada um se produz. Cada um cultua o self, na medida em que é o sacerdote de si mesmo.”


[…] A autenticidade se revela como antagonista da sociedade. Devido à sua constituição narcísica, impede a formação de comunidade. Decisivo para seu conteúdo não é a referência à comunidade ou a outra organização superior, mas ao valor de mercado que anula todos os outros valores. Sua forma e seu conteúdo, assim, são uma coisa só. Ambos dizem respeito ao self. O culto de autenticidade desloca a pergunta da identidade da sociedade para a pessoa singular.


[…] A coação de autenticidade leva a uma introspecção narcísica, a uma ocupação permanente com a própria psicologia.”


[…] A sociedade da autenticidade é uma sociedade da intimidade e desnudamento. Um nudismo da alma concede seus traços pornográficos. Relações sociais são tão genuínas e autênticas quanto mais revelam de privacidade e intimidade.”


[…] As formas exteriores da sociedade não constituem mais um ideal de vida elevado.”


[…] As roupas ficam cada vez mais monótonas e menos variadas. Se uniformizam como uniformes de trabalho… Reproduz-se, na moda, a pornografização crescente da sociedade. Se mostra mais carne do que formas.”


Na esteira do culto de autenticidade, as tatuagens têm voltado a estar em moda. No contexto ritual, simbolizavam a aliança entre o singular e a comunidade. No século XIX, no qual a tatuagem era benquista, sobretudo pela classe alta, o corpo ainda era uma área de projeção de anseios e sonhos. Às tatuagens de hoje falta essa força de símbolo. Elas remetem somente à singularidade de seu portador. O corpo aqui não é nem um palco ritual, nem área de projeção, mas área de propaganda. O inferno neoliberal do igual é habitado por clones tatuados.”


O culto de autenticidade faz erodir o espaço público. Destruído, esse se torna espaços privados. Cada um carrega consigo seu espaço privado para toda parte.”


[…] Mas essa genuinidade não é outra coisa do que grosseria e barbárie. O culto narcísico da autenticidade é corresponsável pelo embrutecimento crescente da sociedade. Vivemos hoje em uma cultura do afeto. Onde gestos e modos rituais ruem, os afetos e emoções ganham predominância Nas mídias sociais também é desmantelada a distância cênica constitutiva da esfera pública Até o ponto de uma comunicação de afetos que não guarda o distanciamento necessário.”


A coação de autenticidade torna tudo subjetivo.”


[…] O homo phychologicus narcísico está aprisionado em si, em sua interioridade complicada. Sua pobreza de mundo lhe deixa apenas girar em torno de si mesmo. Entrega-se, assim, à depressão.”


Onde assola o narcisismo, desaparece o lúdico da cultura. A vida tem perdido cada vez mais em serenidade e jovialidade e exuberância.”


A profanação da cultura leva a seu desencantamento. A arte também tem se tornado cada vez mais desencantada… A magia cede à transparência… Não seduz mais. O invólucro mágico é retirado. As formas não dizem mais por si mesmas.”


No excesso de abertura e de ilimitado que dominam o presente, perdemos a capacidade de conclusão. Com isso, a vida se torna meramente aditiva… Mesmo a percepção hoje é incapaz de conclusão ou inferência, pois se apressa de uma sensação à outra. Apenas a permanência contemplativa é capaz de concluir, de inferir.”


[…] Sem a negatividade da conclusão, vai-se parar na adição e acumulação infinitas do igual, no excesso de positividade, na proliferação adiposa de informação e de comunicação.”


O imperativo neoliberal da otimização e do desempenho não permite o encerramento. Torna tudo provisório e incompleto. Nada é definitivo e terminal.”


[…] O nós, capaz de uma ação comum, também é uma forma de conclusão. Ele se desintegra hoje em Egos que se exploram voluntariamente como empresas de si mesmas.”


O lugar é uma forma de conclusão. O mercado global é um não-lugar. A conexão também abole o lugar. Do mesmo modo, a rede é um não-lugar. Não é possível habitá-la… E os turistas circulam eles mesmos incessantemente como mercadorias e informações.”


[…] O lugarejo constitui uma ordem fechada. Faz com que uma permanência seja possível… Os rituais de conclusão estabilizam o lugar.”


Os habitantes do lugarejo vivem em um vínculo profundo. Tanto a percepção, como a ação assumem uma forma coletiva. É coletivamente que se vê e que se ouve. As ações não são atribuídas a um sujeito determinado.”


Não têm opinião sobre isso ou aquilo, mas contam continuamente uma grande e única história.” [Péter Nádas]


[…] No lugarejo domina um acordo silencioso. Ninguém o incomoda com vivências e opiniões pessoais. Ninguém busca atenção ou se fazer ouvir. A atenção vale mais do que tudo para a comunidade. A comunidade ritual é uma comunidade da escuta e do pertencimento mútuo.”


A narração é uma forma de conclusão. Tem começo e fim. Uma ordem fechada a caracteriza. Informações, ao contrário, são aditivas, não narrativas. Não se juntam, terminando em um conto, em uma canção que doa sentido e identidade. Permite apenas uma acúmulo sem fim.”


O ser humano é um ser de um lugar. Só o lugar faz ser possível a habitação, a estada. Ser de um lugar, no entanto, não descarta a hospitalidade.”


A cultura é uma forma de conclusão. Por isso, prove uma identidade. Contudo, essa identidade é includente, não excludente.”


A globalização des-loca a cultura em hipercultura, na medida em que expande os espaços culturais, fazendo-os implodir. Assim, se sobrepõem e se atravessam em uma justaposição sem distanciamento. Surge um hipermercado da cultura.”


A abolição dos rituais leva sobretudo que o tempo apropriado desapareça. Os tempos apropriados correspondem aos capítulos da vida. As formas fundamentais do tempo apropriado são a infância, juventude, maturidade, velhice e morte.”


Os rituais dão forma às passagens essenciais da vida. São formas de conclusão. Sem eles, deslizamos pela vida afora. Ganhamos idade sem que fiquemos velhos. Ou permanecemos consumidores infantis que nunca crescem.”

20 de maio de 2025

bem-estar

quando você parar
para olhar
vai enxergar

muitos a se autodeclarar
seus melhores amigos
e no direito se achar
de cuidar da sua vida
com toda certeza
deles você vai precisar

sua vida
como uma casa aberta
a eles vai entregar

em cada esquina
vai encontrar
alguém autorizado a lhe sussurrar
como deve ser
o que deve fazer
onde e com quem deve estar

quem é você
é uma questão que não lhe cabe mais
delegar é tão prático já cansou de se frustrar

sua história
não quer mais narrar
pois eles lhe conhecem tão bem
fazem todo o árduo trabalho
como boas almas
que vieram para ficar

em nome da identidade
que eles lhe insuflam
escolhe livremente não os confrontar.

19 de maio de 2025

Caricatural

O ser de mil amores não sabe amar. Tanto fez. Tanto faz. Para atrair. Agradar e se recompensar. Que se identificou como um ser de nenhum lugar. Não há casa para voltar. Relação duradoura, só contingência para lidar. Compulsão por perverter o prazer e quantificar. Indisponível por tanto projetar. Não sabe de onde vem. Não sabe para onde vai. Não passa de mais um turista subjugado pelo afeto no hipermercado cultural. Não sabe o que fazer. Não está em paz com seu núcleo familiar. Neurose complementar. Sabe muito bem fugir. Fingir. Trabalha para se dopar. Compara-se sem dosar e, comparado, se produz para performar. Ajusta os holofotes para a sombra não chegar à luz e atrapalhar a persona de brilhar. Aceita qualquer coisa. Expõe-se como coisa. Reage como se estivessem a lhe respeitar.

13 de maio de 2025

tensionar

evoluir não é apenas deixar para trás
evoluir é igualmente conservar
integrar aquilo que te faz vivaz
arquétipos que presentificam esse limiar.

11 de maio de 2025

limiar

tecnologia inteligente
propaganda de si mesmo
proteção para o que se deseja.

8 de maio de 2025

Hiperexposição

Não é resposta à privação de sentido. Repulsa ao esvaziamento da humana condição. Nem resistência consciente. Demanda pelo potencial de expressão. Não se fia à relação. Alteridade? Libido violentada. Desejo descalibrado. Busca-se apenas conexão. Com as demais estrelas que compõem a mesma constelação. Como se, curtindo-se mutuamente, brilhassem distante da multidão. É o uso reforçado. Premeditado e cambiável. Numérica equiparação. Otimização das propagandas de si mesmo. Que converge com a propalada diversidade da neoliberal permissão.

7 de maio de 2025

pião

roda roda
como um pião
roda roda
sem direção

empreendimento
de si mesmo
roda roda
sem dizer não

roda roda
louco por aceitação
roda roda
compensação e frustração

roda roda
até acabar
rodando e rodando
só pela ausência de coração.

6 de maio de 2025

merecimento

autodestruir-se é se autodefender
como assim, vocês não conseguem me ver?!
já que meu valor não podem reconhecer
vejam só o que aprendi a fazer!

Sugestões de leitura V



5 de maio de 2025

Reminiscências

Quase sinto os cheiros, toco os pés nos chãos, vejo os rostos, ressinto as emoções. Não fosse o abismo que separa aquele que narra daquele que as experimentou. Desejo. Medo. Expectativa. Insegurança. Surpresa. Admiração. Alegria. Satisfação. Um misto na memória. Que perpassa o corpo todo. Meu elogio a você, sua família e amigas. Meu amor.