Ainda no asfalto viu uma carta de
baralho jogada na sarjeta, bem em frente ao bar que ficava próximo
de sua casa. Uma dama de ouro pela metade, com a inconfundível
coroa, símbolo da nobreza que somente a poucos abençoava... O que
estaria fazendo uma dama como aquela em frente a um bar? –
ironizou, pensando em como os pensamentos podem se ramificar diante
das mais simples casualidades. Pelas estradas de areia, encontrou
velhos sapatos, de mulheres, homens e crianças, lembranças que uma
família inteira já não precisava, uma cadela que se escondia no
meio do mato para proteger os seus dois filhotes que, assim como ela,
também correram assustados quando ele os encontrou igualmente por
acaso. Coincidências que acarretavam as mais diversas reações.
Voluntárias e involuntárias. Quais motivos a levaram a ficar por
ali (era a segunda vez que os via, assim como suas pegadas), se, pela
aparência, não lembravam em nada uma raça de cachorros do mato,
mas antes a que conhecia como vira-lata? Será que sofrera tantos
maus tratos a ponto de preferir fugir da domesticidade, cuidando dos
seus em um ambiente mais selvagem? Ouvindo NOFX no walkman que um
velho grande amigo lhe dera, quando era o que mais precisava, seguia
tranquilo em sua jornada. Mesmo que se perdesse algumas vezes em meio
aos canaviais, encontraria aquele lugar que há um tempo vira, mas
não pode apreciar, pois ali um casal supostamente pescava. Apesar de
lhe parecer estranho o fato do homem esconder a mulher atrás de seu
corpo quando ele passara. Uma represa, rodeada por uma mata, onde o
frescor era tão intenso que o fazia sentir, compreender o que
motivara muitos a largarem a vida nas cidades mais abastadas para com
a natureza um maior contato celebrarem. Após alguns minutos, intuiu
que estava perto, pois já se beneficiava do oxigênio renovado que
as plantas, nestes lugares, costumam produzir sem o menor interesse
sobre o bem o ou mal que de suas ações podem resultar. Pedalou mais
um pouco e eis que viu o que tanto procurava. Lá estava a água, as
margens e as árvores que a circundava. Um bela represa, na verdade,
mais uma propriedade particular com uma placa que alertava sobre a
proibição da caça e da pesca como intuitivamente esperava se
tratar. Não que quisesse praticar alguma destas atividades. Tudo o
que queria era contemplar, sentindo, associando o que lhe chegava com
as lembranças que guardava. Após o que chamaria êxtase, voltou à
estrada e continuou seguindo, sempre beirando a mata, até ser
retirado de seu estado de entorpecimento quando uma lebre cruzou o
seu caminho a toda, espantada pela sua presença naquele espaço
onde, naquela época, provavelmente poucos homens por ali passavam.
Corria como uma desesperada, e ele não pode deixar de pensar sobre o
instinto de sobrevivência que age sobre todos os animais. Como a
areia havia se acumulado naquele trecho, visto que a água das chuvas
por ali escoava, quase perdera a direção, tamanho o susto que a
lebre provocara. Também ele reagiu como se estivesse ameaçado.
Recuperado, dava boas pedaladas, pois como ainda era cedo, queria ver
até onde poderia chegar. Não tardou e viu um filhote de tamanduá
passar correndo, talvez estranhando a presença daquele humano por
aquelas paragens. Notara que só havia as marcas de pneus de uma
moto, já quase apagadas. Retirou os fones dos ouvidos, pois imaginou
a quantidade de pássaros e outros animais que deveria haver no
interior daquela mata, visto que de tempos em tempos, a indústria
que arrendava toda aquela terra para transformá-la em extensos
canaviais, ateava fogo antes de colher a cana para ser, em sua
própria usina, processada. Quantos não seriam mortos a cada período
de safra graças a estas práticas tão civilizadas? Será que
aquelas espécies julgavam as leis humanas como contrárias às leis
naturais, como ele as julgava? Teriam tempo de se reproduzirem? Às
aves ainda restava o recurso de migrarem, mas e os animais
terrestres, quais seriam as suas táticas? Não tardou a encontrar
uma fazenda com algumas casas, ouvir vozes humanas, o latido dos
cachorros, o que lhe bastou para lembrar-se que sequer sabia aonde
estava, que usara muitos atalhos e que muito provavelmente se
perderia até encontrar o caminho de volta. Escurecia e o nosso
personagem pedalava, entre a cana, chegando às cercas que demarcavam
as extensões imensas daquelas propriedades. Pensava que dispunha da
lanterna de seu celular, caso demorasse tanto para reconhecer uma
coordenada que o ajudasse a se localizar. Isso o tranquilizou,
tomando um bom gole de água... Ligou o walkman, Fat Mike gritava por
mudança, ironizava a tacanha moralidade humana, reivindicava através
da música uma liberdade que apenas figurava nas constituições, mas
que na prática acabava desprezada... Para não me estender em suas
idas e voltas por entre os carreadores dos canaviais, vamos alçá-lo
aos caminhos que gravara e que, com a ajuda da lua que poupou o uso
da luz artificial, o levaram a enxergar as luzes da cidade, e assim,
após algumas músicas de um novo disco que já se iniciara, chegou à
sua casa. Pronto para preparar uma janta que, após o banho que foi
tão refrescante, devorou como se estivesse há anos sem sentir o seu
próprio paladar.