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30 de abril de 2020

Dúbio

Deve ser admirável a profundidade
Do cair de mais um dia
Contudo, aqui não há entusiamo
Os astros já não brilham

Te amo
Te quero
Te preciso

Para que haja seiva
Sangue corrente
Vontade criativa

Mas o que posso fazer
Com o drama, a melancolia
Se você está tão longe
Acima ou abaixo desse solo que nos abriga?

23 de abril de 2020

ode aos minerais

crianças instruídas
pelas cartilhas das eminentes autoridades
fazendo uso contínuo
das drogas do humor invariável
aterrorizadas diante dos discursos apocalípticos
presas fáceis dos senhores da verdade
retrocedemos de mãos dadas dentro desta nave
como se isso fosse o nosso diferençal
para a volta àquela velha normalidade.

19 de abril de 2020

Inquieto

Não teme pelo tempo. Nem se foca no espaço. Escreve sobre aquilo que sente. Pensa. Imagina. Sonha. Acredita ou detesta. Recorrendo a um modo há muito usado para trocar umas ideias com o que vive assombrando dentro. Sem concessões, seria exagero. Já fez e muitas, mas não com o que escreve. Aí seria patifaria! - como diria uma grande amiga. Escreve o que lhe dá na telha. Sobre o que fica e consegue ser resgatado quando esses impasses continuam circulando e circundando suas veias.

15 de abril de 2020

Mulher de palavra

 Tom e Marlon terminaram seu trabalho. Arrumaram suas ferramentas, pegaram suas marmitas vazias e iam caminhando para a rua quando subitamente se lembraram de algo.
 Era sexta, o dia de passarem pela casa de seu amigo Denis para jogarem algumas rodadas e tomarem aquele porre invejável.
 Subiram no carro de Marlon e voaram para o mercado na expectativa de acharem uma promoção de cerveja gelada.
 A garota do caixa ficou desconcertada com a quantidade, mas não deu a menor bola quando eles começaram com as suas já ensaiadas cantadas.
 As mesmas que os fizerem conseguir a atenção de suas mulheres. Que, segundo pensavam, estavam em suas casas e por lá ficariam esperando até que eles chegassem.
 A cerveja estava cara e morna, mas mesmo assim seguiram sua jornada. Agora, só faltavam mais alguns quilômetros e logo estariam na casa de Denis para mais uma noitada.

- Puta vida boa essa, hein! - disse Marlon.
- Pode crer! - respondeu Tom.
- Não existe nada melhor pra se fazer depois que a gente acaba o serviço!
- Só!
- Cara, já reparou como a Sandra é estranha?
- É… Você acredita que ela me pediu pra gente deixar o Denis quieto. Não ir mais até a casa dele, que ela tá perdendo a paciência.
- Ah, véio… Isso é problema deles lá. A gente já se conhece há tanto tempo... Se o cara quisesse que a gente parasse de ir lá, ele mesmo falava, não acha?
- Verdade. Mas ele tem que ver essa parada. A Sandra tá me olhando com umas caras…
- Caras?
- É… Acho que se ela pudesse, ela me matava. E você também. Cuidado!
- Qualé! Ela é só uma mulher apaixonada. Loucamente apaixonada, mas logo isso passa. Cê vai ver. Não passou com você e a Ana?
- É, passou… Se bem que ela já me falou que se tiver festinha essa semana, eu não entro mais em casa.
- Isso é chantagem, cê tá ligado! Elas nos adoram, cara!
- É… Talvez.

 Estacionaram e foram logo gritando para o amigo vir ajudá-los com as sacolas lotadas. Sem resposta, foram abrindo a porta e se deparam com uma cena bizarra.
 Denis estava estirado no chão. Uma bala no meio da testa. Ficaram alguns minutos estupidificados. Nenhum dos dois se mexia, nem conseguia dizer nada. Talvez sequer pensavam.
 Passado o choque, entraram para dar uma geral pela casa, mas logo foram surpreendidos quando se depararam com a autora do crime bem ali, com a arma nas mãos aguardando pelas próximas vítimas.
 Calma, sem qualquer indício de que temia alguma reação inesperada. Foi logo abordando os rapazes e pedindo que escolhessem quem seria o primeiro a levar a próxima bala.
 Marlon recuou assustado, tentando fugir, mas mal teve tempo de se virar e já ganhou a sua parte. Um tiro que o fez cambalear e cair deixando uma boa parte o quarto manchado de vermelho.
 Aquela cor que Sandra tanto adorava.
 Tom, visto que não havia nada a fazer, foi logo ajoelhando e pedindo desculpas, perdão por todos os pecados.
 Sandra escutou com calma, sorrindo daquele seu jeito estranho, e tão logo acabou aquela ladainha, mirou e disse:

- Quantas vezes não avisei vocês que sexta é o MEU dia de ficar com o Denis. Que não quero ele mais andando com vocês? Quantas vezes, hein?
- Ah, então foi por isso?!
- Claro que não, seu tapado!
- Foi por isso e por todo o resto. Vocês sabiam que ele estava tendo um caso! Sabiam e até trocavam sorrisinhos de cumplicidade quando eu estava por perto. Você acha que eu não sei?
- Ei, espere! Do que é que você está falando?
- Tô afirmando. Vocês sabiam. Aposto que todos tem os seus casinhos por aí. Bom, tinham, né?
- Como? Por favor! Eu não tenho caso nenhum e posso te provar…
- Ah, vá se foder, cara! Eu não quero prova nenhuma. A merda já tá feita. Agora só falta você. Me diz, o que é que você quer que eu e a sua mulher escrevemos em seu túmulo: marido fiel, pai dedicado, essas merdas todas?
- Eu… eu… eu nunca pensei sobre isso. Olha, vamos conversar, deixa eu te explicar...
- Que explicar o caralho! Diga: que merda a gente escreve na tua lápide?
- Deixa eu ver: trabalhador, pai e marido. Deixou saudades.
- Você é uma piada, né? Olha, já que está com todas essas cervejas aí, me passa uma que eu tô louca pra tomar a minha gelada. Afinal, hoje é sexta, não? - e ria, ria como se o riso fosse a sua melhor cartada.
- Tá... tá aqui. Só que não tá muito gelada.
- O quê?
- É, a gente pegou elas no mercado, você sabe. Esse horário é foda.
- Ah cara, aí você pediu pra morrer mesmo, né! Cerveja quente, porra!
- Não foi culpa minha. Se você quiser eu vou pegar uma bem geladinha pra você agora mesmo. Que marca você quer?
- Você tá me tirando, né? Acha que eu vou pedir pra você ir pegar cerveja pra mim?!
- Eu só estava tentando ser gentil.
- Agora? Vai ser gentil na caso do caralho!!!
- Sandra, olha, não tenho nada a ver com isso, tenho mulher e filhos e não tô podendo morrer agora não, sabe?
- Sei, mas vai. Não tem outro jeito. Vai levar um balaço no meio da cara pra ir junto com os teus amigos. Vocês três vão poder se divertir muito juntos!
- Por favor! Não tem nada que eu possa fazer para não morrer?
- Deixa eu ver… Não, não tem. Isso é parte do destino. Não do seu. Você cruzou o meu caminho. Não tem volta. Agora fica bem quietinho que não vai doer nada.
- Não, Sandra! Eu faço qualquer coisa! Juro que faço. Saio correndo daqui, ninguém vai me ver, não falo nada. Eu imploro!
- Que lindo! Mais um covarde. Meu, você não entendeu que eu preciso dos três mortos juntos?
- Por quê?
- Ora, porque é assim que eu imaginei. É assim que tem que ser.

 Levantou tranquilamente a arma que estava apoiada no seu colo, mirou e cumpriu com o combinado.
 Em seguida, foi até a sala, abraçou o seu amante, beijo-o e desejou ficar com ele pra sempre. Só pra ela. Para todo o sempre. Ou até ambos se cansarem daquele marasmo.

10 de abril de 2020

não há nada

Só necessidade. Instinto de sobrevivência e vontade para seguir. Procurando levar alguma vantagem. Razões e motivações alucinadas. Convencidas da obrigatoriedade da resignação à escravidão voluntária. Tentando esquecer. Esquecendo-nos pelos bares, igrejas, templos, casas. Ruas, praças, shoppings, zonas, hospitais psiquiátricos. Salas de aula, de espera. Superlotadas. Cenas e celas infectadas. Todo e qualquer lugar capaz de espremer nossas humanidades. Chutando-as para lugares onde não possamos encontrá-las. Depois de feitos os milagres. Não há nada. Só essa busca desenfreada. Pela salvação. Pelo status do corpo e da alma. Quebra-cabeças com peças que não se encaixam.

5 de abril de 2020

amigo imaginário

corda no pescoço
arma engatilhada
veneno no estômago
cartão de crédito estourado

pensou que seria fácil
bastava-lhe o consumo
para parecer descolado

mal sabia
que o prestígio
também pressupõe
o direito de explorá-lo

dissimulação
que o mantém separado
sempre deslumbrado

em quase todos os contextos
de sua vida diária
com o sonho que só foi seu
quando deixou a si mesmo de lado.

abolição?

antes ou depois
o primeiro ou um dos últimos
muito tempo, pouco tempo

sem sentido, com sentido
pressionado ou convencido
comprado ou merecido

pouco importa
quem não aceita é quem não
sabe o valor da honra, as vantagens da glória
de ser o grupo que decide as jogadas

fatalista ou realista
alguém pagará pela alforria
desses objetos que já não podem ser usados?

oh, saudades dos velhos tempos
em que não se podia traficar
mas que era direito constitucional
continuar a escravizá-los!

1 de abril de 2020

atrito

pensar em civilização
pressupõe considerar o atrito
talvez porque
apesar de todos os potenciais disponíveis
e de todas as riquezas que produzimos
somos forçados a trabalhar muito mais do que o devido
para uma pequena minoria monopolizar e monopolizar sem limites

contêineres cheios de mercadorias
e barrigas vazias
cofres ultra protegidos
e pessoas mortas todos os dias
pela fome, pela miséria
pelas barreiras reais e imaginárias
socialmente construídas e justificadas como imprescindíveis

mercado econômico cultuado
por pessoas em destaque
e também pelas pessoas esquecidas
escravizadas pelo próprio modo de produção
que as exterminam

talvez o atrito
reduza essa velocidade alucinante
nos convença de que as convenções sociais
não são independentes dos limites físicos
de um universo onde nossos atos não passam assim tão despercebidos

talvez nossa felicidade
assuma outra rumo
não provenha mais da fuga da dor
mas advenha da vida compartilhada
associada e comprometida com todos os organismos vivos.